“A política nas democracias ocidentais está a esvaziar-se”

30-05-2018 | Catarina Dias

Pedro Martins é investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade (CEPS) e professor do Instituto de Letras e Ciências Humanas da UMinho

Este projeto está integrado na atividade do CEPS, que organiza várias conferências internacionais por ano. A próxima decorre no próximo mês e conta com investigadores de mais de uma dezena de países

Este fenómeno pode existir tanto à direita como à esquerda: À direita destaca-se o caso de Donald Trump, considerado o expoente do estilo populista (foto: The New Republic)

Alberto João Jardim foi um dos exemplos mais claros de populismo no país. "Foi um populista assumido que zelou pelos interesses do 'povo madeirense', contra as elites de Lisboa", realça Pedro Martins (foto: TVI 24)

“As pessoas voltam-se para os líderes populistas porque estão dececionados com os partidos tradicionais. Não é de espantar o que está a acontecer na Europa”, diz Pedro Martins. Nesta foto (Fortune), a líder do FN está a tirar uma selfie com uma apoiante

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Entrevista a Pedro Martins, investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade (CEPS) e um dos coordenadores de um estudo internacional que quer mostrar o outro lado do populismo.

O docente do Instituto de Letras e Ciências Humanas falou da descaracterização dos partidos políticos tradicionais, da crise das democracias representativas… e de Donald Trump, Marcelo Rebelo de Sousa e Alberto João Jardim, um dos grandes ícones do populismo português.


Cocoordena o projeto “Clarificar o populismo: história, dimensões, desafios de um conceito esquivo”, que junta investigadores de várias universidades a nível mundial. Que objetivos estão subjacentes a este estudo?
O projeto, também liderado por Giuseppe Ballaci, do CEPS, resulta de uma rede internacional com cientistas de mais de uma dezena de universidades de vários países no mundo. O principal objetivo é clarificar o conceito, dando um contributo no sentido de definir, com mais rigor e precisão, o que é o populismo e como funciona na vida política em várias dimensões. Diferentemente de outras abordagens mais empíricas, queremos aprofundar a questão concetual, preenchendo uma lacuna que existe na literatura. Para isso, recorremos obviamente a contributos já existentes e relevantes sobre a matéria, como os de Ernesto Laclau, sendo que alguns dos investigadores do projeto já produziram trabalhos de referência sobre o assunto. É o caso de Nadia Urbinati (Universidade do Columbia, EUA), Paula Diehl (Universidade Humboldt de Berlim, Alemanha), Lasse Thomassen (Queen Mary Universidade de Londres, Reino Unido), entre outros.
 
Quantas vertentes envolve este projeto?
O projeto envolve, fundamentalmente, três vertentes, tendo como primeira finalidade definir o conceito e estudar até que ponto é fecundo para avaliar o discurso e a prática política, mostrando a articulação entre a forma e o conteúdo, algo que nem sempre é tratado. Depois, pretende-se analisar a relação entre o populismo e a crise das democracias representativas. Ou seja, tentar compreender, no fundo, porque é que nas democracias atuais surgem líderes, movimentos e partidos políticos com orientação populista e anti-establishment. A terceira vertente, talvez a menos explorada, relaciona-se com os contributos do pensamento clássico. O populismo surgiu por volta do século XIX. Há antecedentes na história dos EUA, com o Partido Populista Americano, bem como na Rússia. Apesar de o fenómeno ser recente e estar intimamente ligado às democracias contemporâneas, consideramos que é útil repensar e avaliar os contributos dos grandes pensadores do passado, como, por exemplo, Platão, com a sua crítica à democracia e à sua tendência para a demagogia, e Maquiavel, que escreveu sobre a necessidade de os líderes agradarem ao “povo”, tendo em vista a conquista e a manutenção do poder. O contributo de Jean-Jacques Rousseau é também extremamente importante, pois criticou, no século XVIII, os regimes representativos/liberais e defendeu o primado da vontade do povo em relação às vontades particulares de certos grupos, aquilo que se designa hoje por “elites”. Muitos mais exemplos poderiam ser referidos.
 
Afinal, o que é o populismo?
Não é fácil responder a esta questão... Na literatura atual, as respostas a esta pergunta são diversas e, por vezes, contraditórias. O politólogo holandês Cas Mudde defende que é uma “ideologia fina” que assenta, essencialmente, no confronto entre o “povo puro e homogéneo” e uma elite corrupta. Segundo Mudde, sendo esta uma visão geral sobre política, também é uma ideologia, mas “fina”, porque pode adaptar-se a diversas visões ideológicas, de esquerda ou de direita. Aliás, a dicotomia povo/elite, embora seja explorada através de métodos, perspetivas e alcances diferentes, é um traço estrutural na leitura de quase todos os estudiosos da área. Seguindo esta linha, o líder, movimento ou partido identificam-se, de uma forma direta e autêntica, sem mediações, com o sentir do povo. O mesmo poderia afirmar-se de uma ideologia e da própria linguagem. Esta ideia foi extremamente explorada nas últimas eleições americanas, com Donald Trump a criticar continuamente o establishment político e partidário. Aqui, o conceito de elite é usado no sentido pejorativo, o que nem sempre aconteceu no pensamento político tradicional, que é maioritariamente elitista. Há também quem considere que o populismo é apenas um estilo, uma estratégia de comunicação para ganhar eleições. Neste caso, o que interessa é conquistar a opinião pública e principalmente os que não são representados pelo sistema político. Alguns académicos acreditam mesmo que é uma estratégia manipuladora que faz apelo às emoções mais básicas do ser humano e aos preconceitos mais enraizados, explorando medos como a xenofobia e cultivando a irracionalidade. Já no pensamento clássico existiam críticas de Platão aos demagogos, aqueles que iam ao encontro do sentimento da população, conseguindo convencê-la e manipulá-la, sem apresentar soluções estruturadas e favoráveis aos seus interesses.
 
Isso significa que é possível encontrar resquícios de populismo quer em partidos de esquerda, quer em partidos de direita?
Exatamente! Por exemplo, o partido espanhol “Podemos” usou algumas dimensões do populismo mais à esquerda, criticando as políticas neoliberais que favoreçam apenas as elites económicas contra o povo e os mais desfavorecidos. O democrata americano Bernie Sanders, que se candidatou às eleições primárias de 2016, também foi “acusado” pelos republicanos de ser populista. À direita, temos o caso de Donald Trump, considerado o expoente do estilo populista, bem como os partidos Frente Nacional (França), Movimento 5 Estrelas (Itália) e Aurora Dourada (Grécia). Normalmente, os partidos de direita dizem que as propostas de esquerda são populistas porque vão ao encontro daquilo que as pessoas anseiam, sem ter em conta, realisticamente, os custos para as finanças públicas: salários mais elevados, ensino gratuito, serviços de saúde a preços acessíveis, subsídios de desemprego, etc. Já a crítica da esquerda ao populismo de direita está relacionada com a rejeição de uma deriva mais xenófoba e nacionalista ou com a aceitação do “politicamente incorreto”. O populismo de direita que está a ressurgir na Europa tende a favorecer uma liderança mais autoritária e identificada com os gostos e o sentir do “povo”.


Rejeitar o populismo é “enterrar a cabeça na areia”
 
O populismo tende a ser visto de forma pejorativa. Os próprios políticos fogem deste rótulo. Não há um populismo bom?
Em Portugal, esta ideia negativa é, de facto, partilhada por uma parte importante da sociedade e explorada, não por acaso, pelos media e por alguns opinion makers. Com o nosso projeto queremos ultrapassar esta visão redutora, mostrar que o populismo não deve ser perspetivado apenas assim e que pode até ser bastante estimulante e revitalizante para as democracias. O Ocidente está a assistir a um esvaziamento da política e a uma crise da representação. Os partidos estão a descaracterizar-se e as políticas não são escrutinadas democraticamente, não resultam da vontade dos eleitores, mas sim de decisões supostamente técnicas e burocratas. Os cidadãos voltam-se para os líderes populistas porque estão dececionados com os partidos tradicionais. Não é de espantar o que está a acontecer na Europa, com a emergência de partidos populistas. Por mais ilusórias e “politicamente incorretas” que sejam as propostas, as pessoas identificam-se com aquelas ideias defendidas e com aquele estilo e forma de fazer política, para desespero de algumas elites, designadamente intelectuais e políticas. É fundamental compreender este fenómeno a um nível mais profundo. A rejeição liminar pode ser uma forma de “enterrar a cabeça na areia”.
 
Podemos falar de populismo em Portugal?
Por cá, não há manifestações tão claras, por diversas razões. O nosso sistema aguentou-se, deu uma reviravolta com a atual maioria parlamentar (“geringonça”). Mal ou bem, de forma real ou ilusória, foi mais ao encontro das expetativas da maioria da população. No entanto, uma grande parte dos portugueses olha para o populismo de forma pejorativa, apesar de haver alguma adesão a um certo discurso, muito popular, contra os políticos. Os partidos de direita, por exemplo, afirmam que o populismo é de esquerda e que a direita é mais realista. “Não fazemos o que o povo quer, mas o que deve ser feito. Nem que isso nos leve a perder eleições”, defendem. Esse discurso na direita portuguesa foi muito usado, nomeadamente por Pedro Passos Coelho. Já Alberto João Jardim, que presidiu ao Governo Regional da Madeira durante quase 40 anos, foi um populista assumido que zelou pelos interesses do “povo madeirense”, contra as elites de Lisboa e do Continente, inclusivamente do seu próprio partido. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também explora algumas dimensões do populismo, mais estilísticas e discursivas do que ideológicas. Estratégico e autêntico ao mesmo tempo, não pode ser visto como um populista puro, pois defende o sistema político e partidário vigente. 
 
Esta forma de fazer política veio para ficar?
É impossível prever o que vai acontecer… Mas, se continuar a haver uma descaracterização dos partidos em que as políticas sejam sempre as mesmas e determinadas por certas elites, particularmente económicas, e em que as necessidades, os anseios e as preocupações da grande maioria das pessoas, não sejam atendidas, o populismo pode, de facto, ganhar força e sabe-se lá até onde nos pode levar. Basta recordar alguns exemplos do início do século XX.
 
Acha que pode levar ao colapso das democracias representativas?
Tudo depende da forma como as democracias representativas responderem a este “desafio” ou “ameaça”. De um modo geral, o populismo tem uma visão muito crítica sobre as democracias representativas. Pretende formas mais diretas e autênticas de participação, representação e decisão, não tão mediadas pelos procedimentos, práticas e instituições representativas que têm vigorado nos regimes parlamentares como o português, o que pode conduzir a ditaduras, mas também a democracias mais participativas. Ao longo da história do pensamento político, a democracia direta foi contestada por se acreditar que podia levar a um despotismo das maiorias intolerantes e tirânicas, não havendo processos de ponderação crítica das decisões e pluralismo, como nos regimes parlamentares. A história mais recente mostra, no entanto, que o populismo sempre foi e será a outra face da democracia liberal/representativa.