“Sinto obrigação de transmitir aos outros o que aprendi”

27-11-2018 | Paula Mesquita

Candidatou-se em 1981 para técnico auxiliar de laboratório no Departamento de Física, onde ainda trabalha

Dedica-se à construção e adaptação de equipamentos, feitos nos mais diversos materiais, para apoio ao ensino e investigação

"Nunca utilizo a palavra 'não'. E, se não souber, peço ajuda!", admite

“Gostaria que o Departamento de Física encontrasse alguém com caraterísticas idênticas às minhas, para que lhe possa transmitir todos os meus conhecimentos”, confessa

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Américo da Costa Rodrigues

Nasceu em 1954 no seio de uma família pobre. A infância frágil tornou-o numa pessoa “que não se fica pelos ajustes” e este espírito levou-o até à UMinho, em 1977, exercendo como guarda-noturno. Hoje é técnico auxiliar de laboratório e deseja que o Deptartamento de Física encontre alguém com "caraterísticas idênticas" às suas, para poder transmitir todos os conhecimentos.


Como foi a sua infância?
Nasci a 26 de agosto de 1954, na freguesia de Arentim, em Braga, no seio de uma família da mais extrema pobreza, fome e violência doméstica. Resultado desta infância frágil, reconheço que me tornei numa criança rebelde. Aos 5 anos fui vítima de meningite, com poucas probabilidades de sobrevivência. Perdi a voz e só a recuperei já em adulto. Fiz o ensino primário na escola de Ruilhe. Concluí a 4ª classe com muita dificuldade, porque aos 10 anos tive que ir trabalhar para ajudar a família. Trabalhei em marcenaria, na freguesia de Tadim, e tinha um vencimento de 6 escudos por semana! Com os ensinamentos do meu irmão, mais velho quatro anos, aprendi a arte com grande perfeição. Quando eu tinha 14 anos, o meu irmão emigrou para França. Fiquei a trabalhar sozinho na construção de mobiliário para o lar, até aos 23 anos.

O que o fez sair?
A minha ignorância sobre a situação política do país. Graças a essa ingenuidade, ditei o meu próprio despedimento e o abandono da mercenaria. Estávamos em 1977. Nesta altura, iniciou-se uma greve no setor das madeiras, à qual aderi por solidariedade com os colegas. Manifestávamo-nos, cantando de manhã à noite; até que, no dia da grande viragem, acrescentei no reportório a canção Grândola, Vila Morena. A minha ingenuidade era tal que nem conhecia o regime em que tinha vivido nem o significado de liberdade e cometi uma grande asneira! Fui ameaçado com despedimento. Como jovem rebelde que era, não me fiquei pelos ajustes e respondi “à letra”, confirmando a aceitação do despedimento.

Foi difícil manter a sua decisão?
Foi muito difícil, porque os patrões consideravam-me um filho e ainda me pediram para reconsiderar. Mas a minha teimosia não deixou que voltasse atrás.

Acabou por lhe trazer proveito, porque não ficou muito tempo sem trabalho.
Em julho desse mesmo ano fui contratado como guarda-noturno da Universidade do Minho e fui desempenhar as minhas funções para o Largo do Paço. Começava, assim, uma nova fase da minha vida. Na altura, o meu melhor amigo e, na altura, administrador da UMinho, dr. João António dos Santos Cabral, aconselhou-me a voltar a estudar, dizendo-me que, se não o fizesse, nunca teria a hipótese de sair do trabalho noturno.

Voltou a estudar?
Apesar de lhe ter dito que era demasiado velho para voltar a estudar, segui o seu conselho e acabei por concretizar um grande sonho. Comecei por frequentar os estudos no ensino privado, no Externato Carvalho de Araújo, uma vez que trabalhava de noite e de dia não me era permitido frequentar o ensino oficial. Concluí o 9º ano em apenas dois anos. Por dificuldades económicas, tive que interromper. Retomei ao fim de um ano, mas desta vez, no ensino público noturno, no Liceu Sá de Miranda em Braga, onde concluí o 12º ano. Mais tarde, frequentei a Escola Secundária Carlos Amarante, onde concluí o 12º ano de Eletrotecnia. Tinha começado a desempenhar funções de auxiliar/contínuo, nos serviços administrativos, na Reitoria, e, por isso, passei a trabalhar em horário diurno. Foi neste período de tempo, com muito empenho meu e muita ajuda dos grandes colegas que encontrei, que adquiri os primeiros conhecimentos da área administrativa. Também fui frequentando diversas formações, algumas delas de nível 4 e 5, permitindo tornar-me bastante autónomo naquilo que ia executando. Esta grande casa que é a UMinho ensinou-me muito!

Como era a UMinho há 40 anos?
Era totalmente diferente dos dias de hoje. Havia menos gente e todos se conheciam bem, porque nos encontrávamos com frequência, por exemplo, nos pavilhões verdes, para tomar café, conversar e partilhar o dia a dia. Sentíamo-nos parte de uma família!

Como correu a sua vida profissional desde então?
Em 1981, concorri ao lugar de técnico auxiliar de laboratório, para o Departamento de Física da Escola de Ciências da UMinho. Foi uma amiga que me chamou a atenção para a abertura do concurso e ajudou-me prontamente. Eu, que nem me achava capaz de corresponder ao que o lugar me reservaria, fui, a seu conselho também, falar com o diretor daquele Departamento e dizer-lhe que tinha, nas palavras da minha amiga, “jeito para trabalhar com chaves de fendas e alicates”! Mas o sr. diretor disse-me que tinha sido mal informado e que não estava prevista a abertura de nenhuma vaga. Bom, eu que já pensava na atualização do meu salário, fiquei aborrecido e contei à minha amiga. Disse-me que não me preocupasse e que logo se veria o resultado. A verdade é que abriu e nas provas práticas fui confrontado com ferramentas e desafiado a utilizá-las num exercício que consistia na execução de uma extensão elétrica. “É disto que eu gosto!”, pensei.

Para sua alegria, ganhou o concurso. Como foi a partir daí?
No dia em que comecei a trabalhar no Departamento de Física, cruzei-me com o sr. diretor. Mudou de cor ao ver-me e não me cumprimentou. Fiquei surpreendido, mas, bom… era a mesma pessoa que me tinha afirmado semanas antes que a vaga não abriria. Mais tarde, vim a saber que, apesar de haver outra pessoa para o lugar, fiquei em vantagem porque já estava vinculado à função pública.

Como era a ligação com os colegas?
Foi sempre a melhor, construí e contribuí para equipas de grande nível, de eficácia e resolução de problemas. Atualmente desempenho funções relacionadas com a construção e adaptação de equipamentos para o ensino e investigação. Executo diversos trabalhos de mecânica, como peças em torno mecânico, protótipos que passam a equipamentos definitivos em vidro acrílico, madeira, alumínio, latão, cobre, reparações de equipamento elétrico e eletrónico...

O sr. Américo é muito conhecido por colegas e professores. A que acha que se deve esse reconhecimento?
O reconhecimento que recebo por parte de colegas e professores, a quem muito devo, será, no meu entender, fruto da minha forma de ser e de estar e que, provavelmente, só abandonarei no último dia de trabalho nesta casa: nunca utilizo a palavra “não”. E, se não souber, peço ajuda! Houve alguns momentos de desconforto e de injustiça, mas as lições de vida que fui aprendendo ensinaram-me a “engolir” e ultrapassar. A minha mãe repetiu-me muitas vezes: “Um cão pequeno nunca mordeu num grande”; por isso, o melhor é esquecer.

O que é que ainda espera da UMinho?
O que espero desta universidade é que continue a ser uma referência no ensino e investigação internacionais e que contribua para o bem da comunidade local, nacional e mundial. Da minha parte, gostaria que o Departamento de Física encontrasse alguém com caraterísticas idênticas às minhas, para que lhe possa transmitir todos os meus conhecimentos. Sinto que é minha obrigação profissional e moral transmitir aos outros o mesmo que aprendi!
 


  Algumas notas pessoais

  Na gaveta da minha secretária guardo as fotos da minha esposa, filha e neta.
  Mal entro no carro, ligo o rádio para ouvir música do meu tempo, mas em casa prefiro jardinar.
  Considero-me uma pessoa de boas vontades, mas acho que os outros me acham autoritário.
  Num jantar em família não dispenso um bom vinho: Cartuxa.
  Ao fim de semana ligo a televisão para ver o meu Braga.
  Nada me fará esquecer o momento em que cantei a Grândola, Vila Morena.
  Gostava muito que amanhã o mundo fosse bem melhor.
  À sombra de uma árvore, leria novamente o livro Os miseráveis.
  O meu dia não acaba sem a oração pelos falecidos, familiares e amigos.