Freitas do Amaral, um "founding father" da UMinho e da democracia

30-10-2019

A assinar (à direita) com o ministro Veiga Simão a entrada em funções da comissão instaladora da UMinho, sob o olhar do primeiro reitor Carlos Lloyd Braga, a 17 de fevereiro de 1974, no Largo do Paço, em Braga

Vogais da comissão instaladora e representantes de cargos públicos: […], Duarte Nuno Vale e Vasconcelos, Freitas do Amaral, Pinto Machado, Joaquim Barbosa Romero, Lúcio Craveiro da Silva, Amadeu de Carvalho, […], Alberto Machado, Amaro da Costa

A última intervenção pública na UMinho foi numa aula aberta para os estudantes de Direito sobre os 40 anos da Constituição da República Portuguesa, em maio de 2016, na EDUM, em Braga (foto: Flávio Freitas/Correio do Minho)

A discursar na sessão solene dos 40 anos da UMinho, em fevereiro de 2014, no salão medieval do Largo do Paço, em Braga

Na mesma cerimónia, ao lado de Emídio Gomes, que presidia a CCDR-N, do então reitor António Cunha e dos antigos reitores Sérgio Machado dos Santos, Licínio Chainho Pereira e António Guimarães Rodrigues

A ser alvo de uma homenagem nos 20 anos da licenciatura em Direito da UMinho, em dezembro de 2013, em Braga, entre o professor José Gómez Segade e o então reitor António M. Cunha

Nos 20 anos da EDUM foram homenageadas figuras ligadas à sua criação em 1993, como Vieira de Andrade (Universidade de Coimbra), Freitas do Amaral, Jorge Miranda (constitucionalista) e Gómez Segade (Universidade de Santiago de Compostela)

Na conferência "A Reforma da Administração Local: uma Necessidade Urgente", com António Cândido de Oliveira, então diretor do Núcleo de Estudos em Direito das Autarquias Locais, em novembro de 2010 (foto: António Silva/Diário do Minho)

Distinguido como "Personalidade Jurídica do Ano 2007", pela AEDUM, em abril de 2008 (foto: Flávio Freitas/Correio do Minho)

Apresentou em junho o 3º volume das suas memórias políticas, "Mais 35 anos de Democracia - Um percurso singular", em Lisboa. Marcelo Rebelo de Sousa definiu-o na sessão como um dos pais da democracia portuguesa (foto: António Cotrim/Lusa)

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Pertenceu à Comissão Instaladora, ao Senado e ao conselho científico da Escola de Direito. No adeus ao insigne professor, publicámos a sua última entrevista concedida à UMinho.




O professor, jurisconsulto, político, diplomata, divulgador histórico, romancista e dramaturgo Diogo Freitas do Amaral nasceu em 1941, em Póvoa de Varzim e faleceu este mês, em Cascais. Fez a licenciatura em Direito e o doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Esteve também ligado às universidades CatólicaNova de LisboaLusófona e
do Minho. Nesta última, pertenceu à Comissão Instaladora, ao Senado e ao conselho científico da Escola de Direito (EDUM), a qual ajudou a criar e que o laureou em 2007 e 2013, nos 15 e 20 anos da licenciatura em Direito, a primeira do género a nascer fora de Coimbra e Lisboa. Freitas do Amaral é uma referência no direito administrativo e deixa uma vasta bibliografia. A nível político, foi deputado, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa, vice-primeiro-ministro e primeiro-ministro interino. No plano internacional, foi presidente da União Europeia das Democracias Cristãs (1981-1983) e da 50ª Assembleia Geral da ONU (1995-1996). Recebeu ainda títulos honoríficos em Portugal, Itália, Noruega, Alemanha, França e Estónia.



Como conheceu José Veiga Simão, “pai” das novas universidades?
Foi o nosso melhor ministro da Educação. Pela visão, pelas ideias inovadoras, pelas reformas, pelas decisões, pela capacidade de iniciativa e concretização absolutamente excecionais. Quando tomou posse havia quatro universidades: Coimbra, Lisboa, Técnica e Porto. Ele anunciou mais quatro, um dia na televisão: Minho, Aveiro, Nova de Lisboa e Évora. Destas, três singraram muito bem, no seu estilo e nas áreas em que escolheram afirmar-se. Já Évora tem tido dificuldades, é um meio pequeno. Veiga Simão escolheu para subsecretário de Estado da Juventude e Desportos Augusto de Ataíde. Ele e eu fomos os melhores alunos do curso de Direito, ficamos grandes amigos e apresentou-me depois a Veiga Simão, que me pediu vários estudos, designadamente o diploma (que me orgulha) que criou o Instituto de Ação Social Escolar. Este instituto coordenava a atribuição de bolsas, bolsas de estudo, isenções de propinas… Tudo o que era ação social a favor dos estudantes, desde a primária à universidade, passou a ser feito por este instituto, com meios muito generosos na altura. Veiga Simão e eu entendemo-nos bem e começamos a colaborar em várias coisas.
 
Já se falava na Universidade do Minho.
Discutia-se se, a Norte do Porto, deveria haver uma universidade em Braga ou em Guimarães. Lembro-me que, dos estudos pedidos para o Gabinete de Estudos e Planeamento de Ação Educativa, apontava-se para a zona de Guimarães do ponto de vista demográfico, industrial e social. Mas Braga é sede do distrito, tinha muito poder político. Face à tradicional rivalidade, Veiga Simão lembrou-se de exemplos de outros países e, por um ato de justiça, decidiu criar a universidade com um polo em Braga e outro em Guimarães. Passou a haver um vice-reitor permanente em cada cidade. Face à densidade da indústria no Ave (Guimarães, Famalicão, Santo Tirso…), colocou-se então o polo das Tecnologias/Engenharias em Guimarães, ficando Braga com os polos humanistas, como Direito, Letras, Ciências Sociais…
 
Isso não vem no decreto da criação da UMinho.
Pensava que sim. A decisão, a promessa vem antes da criação da UMinho, não tenho dúvidas.
 
Até pela própria designação da província no seu nome…
Exatamente. Foi a primeira universidade sem a designação da cidade. Foi de propósito!
 
Como se tornou vogal da Comissão Instaladora da UMinho?
A minha relação com Veiga Simão era de trabalho e semanal, sintonizada com esse espírito reformista. Para a Comissão Instaladora da UMinho, escolheu para presidente Carlos Lloyd Braga, que foi seu colaborador na Universidade de Lourenço Marques, em Moçambique. Escolheu mais duas ou três pessoas e a mim, considerou que eu era da sua confiança e era também uma forma de agradar às pessoas de Guimarães, embora eu não tivesse ali nascido – o meu pai sim, os meus avós paternos, pois eu tinha nascido na Póvoa do Varzim, donde era a minha mãe; enfim, eu era considerado como vimaranense, e hoje sou cidadão honorário. Portanto, foi assim que nasceu a ideia. Aceitei, tomei posse e fiz parte da Comissão Instaladora em fevereiro de 1974.
 
E a partir daí?
Veio o 25 de Abril, em julho criei o CDS e depois [em outubro] pedi para ser exonerado da Comissão Instaladora, porque me pareceu não ser compatível. Eu ia lá todas as semanas, havia uma reunião em plenário. O seu presidente e primeiro reitor, Lloyd Braga, mandava o motorista buscar-me ao aeroporto do Porto. Se a reunião fosse de um dia, eu tomava o último avião da TAP para Lisboa às 9 ou 10 da noite. Se fosse de dois dias, ia dormir a casa dos pais a Guimarães [sorriso], no dia seguinte voltava a Braga e, no final do dia, regressava a Lisboa.
 
Era o presidente da comissão responsável pela criação dos cursos de Direito, Administração Pública, Sociologia e Economia.
Sim, sim…
 
Nessa altura, não deveria haver grande disponibilidade para o curso de Direito no Minho.
As faculdades de Direito existentes não queriam. Mas Veiga Simão achava que sim, tal como Lloyd Braga e eu. Sempre fui favorável à multiplicação do número [de cursos de Direito]. Mais tarde, vim a ser o principal responsável pela dissidência que houve na Universidade de Lisboa, que estava muito estagnada, fechada a reformas e mudanças, por isso saímos [um grupo de professores] e fizemos a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, com apoio previamente garantido do então reitor Sousa Lobo. Esse período marcou-me e foi muito estimulante.
 

"Quando vi o novo ministro Veiga Simão na televisão, fiquei muito satisfeito"

Como a universidade portuguesa, que era muito corporativa, reagiu ao anúncio de mais quatro universidades?
Reagiu mal, era de esperar. Coimbra já teria reagido mal à criação da Universidade de Lisboa, em 1911. Eu era amigo de Afonso Queiró, professor de Direito Administrativo da Universidade de Coimbra, e mostrou-se desagradado por Veiga Simão ser ministro: “Tem ideias muito avançadas, isto não vai dar certo, isto não pode continuar…” Já viu, um dia vem o Presidente do Conselho [Marcello Caetano] à televisão com ar cansado, triste, sem anunciar nada de novo e a dizer que é muito difícil governar. Noutro dia, vem o “maroto” do Veiga Simão, jovem, cheio de força e ideias, a mostrar como é fácil governar… Quando o vi, fiquei muito satisfeito e senti: “Afinal, há um Ministério onde acontecem as coisas que eu gostava que acontecessem em todos!” [risos]. Eu não era de esquerda, mas achava que só com grandes reformas e modernizações o regime poderia evoluir pacificamente para uma democracia europeia, sem passar por uma revolução.
 
Exato.
Esta explicação [de Afonso Queiró] é algo caricatural, mas de facto muitos não gostaram. Também não gostaram da Lei de Bases da Reforma Educativa, que defendi com Veiga Simão na Câmara Corporativa, contra a frente unida dos professores de Coimbra, e com quem tive boas relações, mas na verdade não queriam nada daquilo. Enfim, também por estas razões fiz parte da Comissão Instaladora da UMinho com muito gosto e tive pena de sair, pois estava muito no princípio. Tenho uma memória muito agradável e positiva desse período. Primeiro, porque estava a fazer uma coisa em que acreditava; segundo, porque aprendi muito, quer com Lloyd Braga, quer com os outros professores – era um pequeno clube de reformistas a querer fazer coisas novas e diferentes para melhor.
 
No projeto da criação desta universidade, houve poucos sinais de movimentações locais para a sua reivindicação…
Tanto quanto sei, nunca tinha sido reivindicado por Braga ou Guimarães, penso que Aveiro também não, porventura Évora teria revindicado porque teve lá universidade [1559-1759]. Bem, Braga e Guimarães não tinham ambiente de tipo académico, ou pré-académico, mas tinham ambiente cultural… Nessas cidades tinham nascido e estudado até ao liceu vultos da cultura, da ciência e depois, quase todos, foram [diplomar-se] para Coimbra. Havia, sim, a tradição de pessoas que levaram à criação da Sociedade Martins Sarmento, do Museu Alberto Sampaio… Havia associações, encontros e congressos, fui convidado para vários. Em Braga era o mesmo. Havia a Biblioteca e o Arquivo Distrital, que foram incorporados no património da UMinho, havia tudo o que se relacionava com a Sé… Em Guimarães também funcionou um colégio no século XVI, XVII, que deu origem a uma universidade no Convento da Costa e seria extinta, mas deixou uma tradição. Portanto, não havia a consciência de uma vocação universitária, mas havia o que chamo de ambiente cultural e que podia contribuir para isso. Quando foi criada a UMinho, creio que essas associações foram de algum modo integradas ou chamadas a colaborar. Já na parte estritamente académica, foi tudo com professores de fora: Porto, Coimbra, Lisboa...
 
Isso não era um obstáculo na altura.
As cidades adaptaram-se muito bem. Começaram a aparecer casas para estudantes, residências para professores… Braga e Guimarães beneficiaram mais com a UMinho do que o contrário. Hoje, a UMinho beneficia muito da nova vitalidade das duas cidades. Acho que estão a retribuir o bem que a universidade lhes fez nos primeiros anos.
 
Via algum inconveniente em ter a UMinho num modelo bipolar?
Sendo filho e neto de vimaranenses e criado em Guimarães, teria preferido que fosse só em Guimarães... [risos] Mas como já tinha algum gosto pelo poder e sensibilidade política, percebi perfeitamente. Veiga Simão perguntou-me e eu disse: “Não lhe posso responder em nome das forças vivas de Guimarães e Braga, não sei se vão aceitar, mas acho que o sr. descobriu a pólvora!” [risos]. E realmente aceitaram. Talvez rangendo os dentes…
 
Sim, a imprensa reflete isso. E do ponto de vista teórico não era o modelo mais ajustado.
Não, em Portugal nunca tinha acontecido. Veiga Simão terá dito, quando falou com os diversos deputados e presidentes de Câmara, que o modelo existia noutros países europeus.
 
Há outras instituições que seguiram esse modelo, até para dinamizar noutras cidades…
Por exemplo, a Universidade Católica começou em Braga e tem polos em Lisboa, Porto, Viseu... Se isto foi inspirado na UMinho, noutros países ou na realidade da Igreja, não sei.



"Sérgio Machado dos Santos foi dos melhores reitores que Portugal teve"

Tem outra história para nos contar? 
Sim. Passou-se mais tarde. Sérgio Machado dos Santos era o reitor da UMinho. Foi um dos melhores reitores que Portugal teve, era extraordinário. Não só nas ideias, nos discursos, nas conceções, mas no dia-a-dia, nas decisões, na maneira como se dava com as pessoas. Houve uma época em que ia todos os anos ao Dia da UMinho. Nunca mais o vi, tenho saudades dele. Mas o que mais apreciei foi a forma como lidava com o Senado; levava as coisas preparadas, porventura com conversas prévias com as pessoas mais difíceis ou com mais peso. O Senado tinha cerca de 40, 50 pessoas, desde professores catedráticos e doutorados, estudantes, funcionários... Era um órgão bastante forte e com pessoas com opiniões. Havia liberdade de expressão e encorajada pelo reitor! Fui nomeado vogal ao abrigo da quota, salvo erro, de cinco personalidades ligadas à Universidade ou à região. Voltei a ir ao Minho para as reuniões duas, três, quatro vezes por ano.
 
Também foi membro do conselho científico da EDUM.
Durante vários anos, com muito gosto e porventura com algumas faltas. Nunca dei aulas lá, não tinha tempo, mas participava nas reuniões e fiquei amigo de muitas pessoas da comissão, inclusive professores do Porto, Lisboa, Santiago de Compostela.
 
Continua a ter uma ligação com a UMinho?
Considero-me um dos founding fathers, por assim dizer [sorriso], e tenho muito carinho por esta universidade. Em 2008 recebi o prémio “Personalidade Jurídica do Ano”, pela Associação de Estudantes de Direito [AEDUM]. A sua presidente fez um discurso muito simpático e deram-me uma jarra de vidro bonita. [Em 2013 houve também uma homenagem da EDUM, em 2014 discursei no Dia da UMinho e em 2016 sobre os 40 anos da Constituição da República.] Portanto, a ligação continua, embora com o tempo se vá esbatendo…
  
 
Entrevista realizada por Fátima Moura Ferreira e transcrita por Márcia Oliveira, no âmbito do livro dos 40 anos da UMinho, sendo aqui abreviada por Nuno Passos