UMinho coordena estudo sobre o impacto da Covid-19 na cultura em Portugal

30-04-2020 | Daniel Vieira da Silva

Salas de espetáculo não deverão voltar a encher até ao final do ano

Manuel Gama, investigador do CECS-UMinho, é o coordenador do estudo

Estudo sugere que tutela assuma papel dinâmico para a recuperação do setor

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A investigação é coordenada por Manuel Gama, do CECS. Com eventos adiados e cancelados, milhares de organizações e profissionais de cultura assumem uma situação dramática.

A realidade não deixa antever boas perspetivas para o setor cultural, até porque o cenário previsto é de uma retoma parcial dos eventos, com quebras significativas no número de trabalhadores afetos ao setor. O estudo pretende medir o impacto mediático e o fluxo de notícias sobre os impactos da Covid-19 no setor cultural nacional, assim como analisar as iniciativas do Governo e avaliar os impactos esperados e observados que a pandemia teve e terá nos profissionais e organizações do setor.


Manuel Gama, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da UMinho e cocoordenador do seu Observatório de Políticas de Comunicação e Cultura (POLObs), é o autor do estudo “Impactos da COVID-19 no setor cultural português”, que está a medir como a pandemia afeta um dos setores mais penalizados na sociedade e estará concluído em março de 2021. O trabalho segue-se aos seu pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da UMinho, na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha) e na Universidade de São Paulo (Brasil), terminado em fevereiro de 2019.

A equipa multidisciplinar – que integra ainda Rui Vieira Cruz, Daniel Noversa e Joana Almada – recolheu dados, nesta primeira fase, entre 16 e 31 de março de 2020 (sob a forma de análise documental e inquéritos por questionário), para avaliar a forma como o problema está a ser vivido no setor. Dividiu-se o trabalho em quatro dimensões: aferir o impacto mediático das consequências da Covid-19 no setor cultural português; Identificar o fluxo de notícias produzidas pelos municípios e pelas entidades intermunicipais que abordam sincronicamente aspetos relacionados com Covid-19 e cultura; analisar as iniciativas do Governo, através do Ministério da Cultura e organismos/entidades por si tutelados, para enfrentar os constrangimentos provocados pela Covid-19; avaliar os impactos, esperados e observados, que a Covid-19 terá e teve nos profissionais e organizações do setor cultural português.


Imprensa deu eco à travagem cultural

No mês de março houve 533 notícias que ligavam cultura com o coronavírus em oito fontes noticiosas. “Houve muitas notícias, de facto, mas a grande parte falou dos encerramentos e cancelamentos de eventos culturais e houve um número muito reduzido de notícias relativos às medidas a tomar para apoiar o setor”, referiu Manuel Gama ao NÓS.

Ao avaliar artigos de sete jornais nacionais (Correio da ManhãDNExpressoJNPúblicoSábado Visão) e de uma agência noticiosa (Lusa), Manuel Gama mostrou-se surpreendido ao saber que, “apesar das muitas notícias publicadas, raramente a cultura conseguiu uma visibilidade maior que lhe poderia ser conferida, por exemplo, com chamadas a primeira página nos jornais”. O investigador considera, por isso, que a cultura deveria ter um maior espaço mediático e que o papel de potenciar o que se faz ao nível cultural deve partir dos próprios órgãos de comunicação.


Cultura é tema deficitário nos sites dos municípios e nos debates do Parlamento

“O impacto que a Covid-19 teve nos portais dos 308 municípios e das 25 entidades intermunicipais foi manifestamente escasso. Não deram eco às fragilidades patentes no setor cultural e isso deixou-nos apreensivos”, afirmou Manuel Gama, após a análise daqueles portais. No total foram identificadas 1049 notícias, correspondendo a uma média de 3.4 notícias em cada um dos 308 sites dos municípios). “A cultura não conseguiu aqui ser automizada como tema”, notou. “Pensamos que os dados provisórios referentes ao mês de março já estão a revelar que há um longo caminho a percorrer para que a cultura seja, efetivamente, uma aposta consistente nas políticas culturais municipais”, sublinhou. Manuel Gama explicou que as linhas de apoio específicas para a cultura tiveram eco residual no fluxo de notícias, o que revela “uma incapacidade de comunicação sobre esta temática”.

Já a difusão de temas que dizem respeito à cultura em contexto de pandemia nos debates e no portal da Assembleia da República "é, também ela, deficitária, o que revela que a cultura continua a não ser uma prioridade na linha de ação governativa”, afirmou o investigador. A afirmação baseia-se na análise da “parca” iniciativa dos grupos parlamentares em torno do tema. “Mesmo em termos legislativos, o único documento que foi possível registar data de final de março e estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à Covid-19 no âmbito cultural e artístico, em especial quanto aos espetáculos não realizados”, explicou Manuel Gama.

Além dos portais da Assembleia da República e do Diário da República, o estudo analisou outras páginas, como  o Portal do Governo e o Portal de Serviços Públicos –, sendo possível perceber que a presença de temas de cultura foi "pontual e irrisória". No que se refere aos websites Cultura Portugal e “Não Paramos Estamos ON Cultura”, o investigador do CECS considerou que as referências feitas apontam para um caminho positivo para a cultura, “com o enfoque a ser dado na necessária adaptação das atividades culturais a um novo contexto social e nas linhas de apoio existentes para o setor”. Ambas as páginas “optam por uma atitude positiva de contribuir para que o setor reaja”, acrescentou, mas isto "contrasta" com o teor das notícias na imprensa analisada.



Organizações apreensivas e profissionais do setor profissional receosos

Também as organizações e profissionais do setor cultural estão a ser “ouvidos” neste estudo. Através de um questionário, que teve cerca de 1500 acessos, foram validadas 144 respostas, que servem “para se tirar algumas ilações da situação atual e futura”. Esta amostra congrega 70% de respostas de profissionais ou agentes culturais e 30% de organizações do setor, sendo que as regiões mais representadas são as do Norte e da Área Metropolitana de Lisboa, com especial incidência em agentes e organizações das artes do espetáculo e criação nesse mesmo domínio.

No global, 76% indicam que os profissionais de cultura conseguem perspetivar o impacto negativo que esta pandemia irá desencadear na sua organização até ao final do ano, sendo que 25% destas organizações afirmam que os postos de trabalho existentes deverão ter uma redução a rondar os 50% até dezembro. Apesar de apenas 6% dos profissionais assumir que haverá cancelamentos definitivos de parte da atividade este ano, as organizações vão mais longe e assumem que os despedimentos serão uma realidade. “Quer isto dizer que pode não haver cancelamentos definitivos de atividades, mas vão acontecer mais despedimentos, o que tornará o setor ainda mais precário, com um pouco menos de atividade, mas com muitos menos postos de trabalho. Será dramático!”, exclamou o investigador do CECS.
 


Vontade política será crucial para a recuperação

Manuel Gama assegura que, “se não forem aplicadas medidas estruturantes por parte da tutela para minimizar a situação, o setor cultural será cada vez mais deficitário e a precariedade irá prevalecer. O Governo, concretamente o Ministério da Cultura, tem que tomar medidas estruturantes para o setor”, disse. “Não nos podemos refugiar nas medidas transversais, nem em paliativos com verbas irrisórias para a cultura… Devemos aproveitar o momento para fazer transformações”, acrescentou. “O dinheiro, todos sabemos, é escasso e a tutela deve assumir-se neste que é um momento-chave para si e para as suas entidades e organismos. Tem que existir uma iniciativa conjunta para que possam criar ou gerir fundos e tratar este problema de imediato. É necessário pensar-se de forma célere e apontar aos problemas do setor que já estão diagnosticados. Deve aproveitar-se a oportunidade para perceber o que é preciso mudar, até porque os problemas da cultura não são apenas na suborçamentação; a própria organização precisa de ser melhorada, otimizada”, reiterou.

Manuel Gama não tem dúvidas em afirmar que “a cultura e a produção cultural” serão diferentes a partir daqui e que o tecido cultural português vai depender, no próximo ano, de três atores claros: Governo, municípios e agentes culturais. A solução, crê, tem que ser conquistada pela luta dos agentes e profissionais do setor, mas depende muito da vontade política: "Caso não exista essa vontade, haverá um forte risco do encerramento de entidades, cancelamento de milhares de atividades e o desmoronar de muitas organizações culturais nacionais, algumas delas emblemáticas”.


Relatório enviado para a tutela e estudo em contínuo até março de 2021

A realização deste estudo, que cumpre uma das missões do POLObs (observar a atividade cultural), servirá para criar documentos que permitam lançar olhares sobre o fenómeno. O primeiro relatório será enviado para a tutela e todos os organismos da administração pública ligados à cultura, assim como para algumas associações representativas do setor, a Assembleia da República e comissões parlamentares especializadas. O próximo documento a ser publicado devera estar concluído em julho próximo e compila os dados recolhidos até ao final do mês anterior. Em janeiro de 2021 estará disponível outra versão, com os dados recolhidos até dezembro. Em março de 2021 será publicada a última parte do estudo, que reflete um ano da Covid-19 em Portugal e a sua influência no setor cultural.