Obra do "bom Sá" compilada em volume inédito

18-12-2020 | Daniel Vieira da Silva | Fotos: Nuno Gonçalves

Sérgio Sousa folheia obras de Sá de Miranda na Biblioteca do Instituto de Letras e Ciências Humanas da UMinho

O investigador é um apaixonado pela obra do poeta introdutor do Renascimento em Portugal

Sérgio Guimarães de Sousa coordena, com João Paulo Braga e Luciana Braga, a reedição inédita prevista para 2021

Poema de Sá de Miranda em azulejos na Casa do Barreiro, em Gemieira, Ponte de Lima

Sá de Miranda influenciou autores como Diogo Bernardes, Luís de Camões ou, recentemente, Jorge de Sena e Ruy Belo

Viveu nos séculos XV e XVI e está sepultado na Igreja de Carrazedo, em Amares, junto à qual foi colocado este seu busto

A Biblioteca Municipal de Amares tem o seu nome e alberga o Centro de Estudos Mirandinos

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Sérgio Guimarães de Sousa, do Centro de Estudos Humanísticos, coordena a reedição de toda a obra do poeta Sá de Miranda num único volume, que deve ser lançada na primavera.





Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
(...)
Que meio espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho inimigo de mim?

in
"Comigo me desavim"


Sérgio Guimarães de Sousa é professor do Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos (DEPL) do Instituto de Letras e Ciências Humanas da UMinho, investigador do Centro de Estudos Humanísticos da UMinho, também em Braga, e diretor do Centro de Estudos Mirandinos, no concelho vizinho de Amares. Está a cocoordenar um trabalho inédito que faz jus a um nome maior da literatura portuguesa. Em entrevista ao NÓS, não tem dúvidas que “o bom Sá” - como, por vezes, é apelidado – assume uma relevância capital no cânone literário português, logo justifica amplamente esta reedição. Na vindoura publicação prevê-se mais de 2000 notas de rodapé resultantes da investigação de tudo o que foi editado pelo poeta introdutor do Renascimento em Portugal, bem como do soneto e do Dolce Stil Nuovo na nossa língua. O insigne autor nasceu em 1481 em Coimbra e faleceu em 1558 em Amares, cujo município se associa a este projeto.


De onde vem o seu interesse por Sá de Miranda?
Leciono Literatura Portuguesa Medieval já há mais de 20 anos. Ora, Sá de Miranda, embora seja o introdutor do Renascimento em Portugal, é, de igual modo, um autor inegavelmente pautado por aspetos da cultura e do pensamento medievais. Esse meu interesse é acentuado com a repetida leitura e o estudo das cartas de Sá de Miranda, especialmente a carta “A El-Rei D. João”, um texto magnífico. Toda a gente deveria lê-la pelo menos uma vez.

O que torna, no seu entender, esse documento tão interessante?
Fornece informações histórico-culturais relevantes para se perceber a cosmovisão mirandina, num período que é já o da expansão portuguesa, mas também não deixa de se reportar à nossa atualidade. Alguns dos problemas diagnosticados então por Sá de Miranda nessa carta são, pois, ainda aqueles que nos afetam enquanto povo e nação. Acresce a tudo isto o facto de eu ter tido a oportunidade de coorganizar, há uns anos, um colóquio sobre o poeta e que viria a originar o livro Estética e Ética em Sá de Miranda.

O que motivou o interesse em reunir a sua obra num único volume?
Não existem muitas edições disponíveis da obra do poeta. Temos, é certo, algumas edições pensadas em função do mercado escolar. Mas apresentam algumas debilidades científicas, razão pela qual perpetuam erros, além, como é claro, da desvantagem de se restringirem a partes tidas como as mais emblemáticas da obra. Quanto à meritória edição da obra completa, em dois volumes, coordenada por Manuel Rodrigues Lapa, da Editora Sá da Costa, embora com várias reimpressões, é de finais da década de 30 do século passado...

Qual é a principal caraterística principal deste vosso trabalho?
Em primeiro lugar, há a intenção de reunir num só volume, assaz espesso, a totalidade da obra. Em segundo lugar, procuramos corrigir as eventuais falhas encontradas em edições anteriores. Digo “eventuais” com toda a precaução, uma vez que o texto mirandino oferece problemáticas diversas, algumas de difícil e mesmo impossível resolução. Como ainda há dias me dizia uma grande estudiosa brasileira de Sá de Miranda, prof. Marcia Arruda Franco, da Universidade de São Paulo, é impossível fazer-se uma edição perfeita da obra do poeta. Isso, seguramente, não existirá. Seja como for, pretendemos aproximarmo-nos o mais possível do texto original.


A sua escrita por vezes não se entende à primeira

Como operaram o levantamento dos textos assinados por Sá de Miranda?
Felizmente, quer a chamada edição príncipe das obras do autor, de 1595, quer a segunda edição, baseada noutros manuscritos, e publicada em 1614, encontram-se disponíveis online, o que facilitou muito o trabalho de reedição. Além destas edições, recorremos também ao Satyras de Francisco de Saa de Miranda, de 1626; e, claro, às diversas reedições e antologias (e foram muitas) que se fizeram da sua obra, consultando com muita sistematicidade a monumental edição da Carolina Michaëlis de Vasconcelos, uma obra de erudição impressionante, publicada em 1885; mas também outras, como Poesía Castellana Completa de Sá de Miranda, publicada pelo prof. José Jiménez Ruiz, da Universidade de Málaga.

O texto complexo e a linguagem muito particular do autor obrigaram a um trabalho suplementar nesta obra?
O texto de Sá de Miranda é, como bem diz, marcado por uma linguagem assaz complexa. Trata-se, não há como negá-lo, de um escritor de difícil legibilidade. O rigorismo e o ascetismo da sua personalidade refletem-se num estilo condensado e rebuscado, para não falar no uso frequente, a demonstrar que a alteridade histórica do autor não se resolve por mera consulta do dicionário, de arcaísmos e provincianismos. Acresce ao padrão vernaculista também a proliferação de tropos retóricos prejudiciais à clareza discursiva, como é o caso do insistente recurso ao hipérbato. Daí a sua escrita se revelar, por vezes, um tanto obscura. Mas convirá também ter presente o seguinte: a obscuridade do texto mirandino, e que tem valido ao poeta injustas acusações de autor excessivamente dependente dos rigores da forma, deve-se, em boa porção, ao seu perfecionismo, muito horaciano.

Era um perfecionista.
Sá de Miranda, até pela sua índole claramente propensa ao exercício da razão, afigura-se, por excelência, devotado à disciplina formal de uma radical economia das palavras; e, com isso, à prática de uma linguagem rarefeita. Isto significa a irredutível possibilidade de dizer o máximo com o mínimo possível. Trata-se do ideal aticista do despojamento formal (inutilia truncat). Eis, de resto, o motivo pelo qual a elipse consiste num procedimento particularmente constitutivo da poesia de Sá de Miranda. E eis, já agora, a razão de ser das quase 2000 notas de rodapé desta reedição da obra do escritor.

Qual é o objetivo dessas “notas de rodapé explicativas”?
Temos diversas notas histórico-culturais, destinadas a explicarem enquadramentos contextuais. Isso permite ao leitor familiarizar-se com dados da constelação cultural quinhentista, essenciais para se perceber devidamente o texto mirandino. Mas a maior parte das notas cumpre outra função: permite ao leitor o acesso, sem dificuldade, ao significado menos evidente de vocábulos, expressões e sentenças. São, dito de outro modo, centenas e centenas de notas de rodapé a elucidarem a complexa linguagem do poeta.



A importância de Sá de Miranda "não se esgota no plano literário"

Considera que esta "era uma obra que faltava" e que Sá de Miranda justificava este trabalho congregador?
 O "bom Sá", como por vezes é apelidado, pela sua relevância capital no cânone literário português, justifica amplamente esta reedição. Esta e outras futuras. Convirá não esquecer que ele é um dos grandes vultos estelares das nossas letras. E a sua importância não se esgota no plano literário, é também um autor dotado de grande densidade filosófica. Ainda recentemente, o professor João R. Figueiredo sublinhava a obra mirandina enquanto "centro de gravidade moral do Renascimento literário português". Vale, por isso, muito a pena relê-la. E sugiro mais: relê-la no detalhe das suas relações intertextuais com outros autores, sejam temporalmente próximos de Sá de Miranda ou localizados noutras épocas, como sucede com grandes poetas portugueses e brasileiros do século XX, que se reapropriaram criativamente da lírica mirandina, em todo o seu esplendor, nas suas produções poéticas.

A obra terá ainda uma relação especial com o Centro de Estudos Mirandinos (CEM)…
 O CEM, localizado na Biblioteca Francisco de Sá de Miranda em Amares e vocacionado para a divulgação da sua obra e vida, é como que o cordão umbilical deste livro, dado a edição se enquadrar no âmbito das suas atividades. Apesar de criação recente, o CEM acolhe já múltiplas iniciativas, como por exemplo a realização periódica de videoconferências sobre o poeta e temas afins.

Não assina este trabalho sozinho. Quem se juntou a si nesta aventura?
Ser-me-ia impossível levar a efeito um trabalho deste fôlego em tão pouco tempo se não tivesse a colaboração de dois investigadores.  Pude, com efeito, contar com a colaboração do amigo e professor João Paulo Braga, da Universidade Católica, com quem tenho trabalhado bastante sobre outro escritor maior, Camilo Castelo Branco. E ambos tivemos o apoio fundamental da jovem e talentosa investigadora Luciana Braga.

Há já uma data prevista para o lançamento da obra?
Se tudo avançar como planeado, a obra será publicada ainda na primavera de 2021.