“Os cantares tradicionais são um património de enorme valor, com importância histórica"

31-01-2021 | Pedro Costa

Bacharel em Animação Sociocultural, licenciado em Gestão das Artes na Cultura e Educação, doutorando em Estudos Culturais, é cantador, repentista, compositor, professor, multi-instrumentista, cocriou o Cantares do Minho e Trio Arpejos e tem 28 discos

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Augusto Canário, ícone da cultura popular, está a realizar o doutoramento em Estudos Culturais na UMinho e quer levar as cantigas ao desafio a Património Cultural Imaterial da UNESCO.




Nasceu há 60 anos em Vila Nova de Anha, Viana do Castelo. Augusto de Oliveira Gonçalves tem o nome artístico de Augusto Canário, cujo apelido recuperou do pai. Cresceu com os acordes no ouvido, mas foi a passagem pelo seminário que o levou definitivamente para a paixão de sempre: a música. Dedicou-se à concertina, após a viola e o cavaquinho. Hoje toca um sem número de instrumentos. Fundou grupos, projetos e escolas de concertina, arrancando para uma carreira imparável e mediática. A ligação à música popular é de tal forma profunda que, mesmo fazendo deste sucesso a sua vida, persiste em iniciar uma linha de investigação que estude o legado desta arte popular, propondo-se investir tempo num doutoramento em Estudos Culturais no Instituto de Ciências Sociais da UMinho. Com esta aposta na academia pretende legar a recolha que coletou ao longo dos anos e contribuir para o reconhecimento dos cantares populares a Património da UNESCO.


Tudo começou ainda criança, vindo de uma humilde e unida família alto-minhota. O pai Joaquim Gonçalves Canário, amante do fado e do folclore, induziu-o com o seu gira-discos a apreciar a arte da música. Augusto começou a tocar viola no Seminário dos Carmelitas Descalços aos 11 anos, mas percebeu cedo que ser padre não era propriamente o que queria. Os escuteiros foram o seguinte e determinante passo, que lhe deu a conhecer a mulher com quem constituiria família, para além de “um grupo de amigos para a vida", que acabariam por cruzar o seu caminho para sempre nos palcos, ruas e terreiros, para cantar e alegrar as festas e as noites. Acabou por despertar o lado da escrita criativa. que “já experimentava desde o seminário”, o que começou a aproximá-lo dos cantares ao desafio, embora a época das músicas de intervenção não lhe tenha passado ao lado.
 
Casaria em 1981. A esposa era professora na delegação de Viana do Castelo da APPACDM (Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental), o que determinaria mais um passo decisivo. Depois de passagens por uma fábrica e por um hotel, como rececionista, foi convidado a trabalhar na APPACDM. “Aí, conheci amigos cruciais, que me deram a conhecer outro instrumento, que o Júlio Pereira tornou muito popular: o cavaquinho”, conta. Em 1984, foi um dos criadores do mítico grupo popular Cantares do Minho e, paralelamente, implementava na APPACDM dinâmicas musicais com utentes da instituição, gerando grande interação social, tanto localmente como em encontros nacionais e internacionais.
 
A cantiga “Fora da Bouça” tinha catapultado o Cantares do Minho para uma agenda sobrecarregada e alguma notoriedade. Criado em 1991, em Viana do Castelo, o Teatro do Noroeste marcou mais um episódio de Augusto Canário, ao convidá-lo para participar numa peça. Como não tinha disponibilidade, ensinou um ator a tocar concertina. Esse facto abriu portas para, a partir daí, criar diversas escolas de concertina no Alto Minho, com apoio do INATEL, do IPJ e de coletividades locais. Seguiram-se os primeiros grandes encontros de tocadores deste instrumento, associando-se os cantares ao desafio e a participação de tocadores de concertina de todo o mundo. “Chegamos a ter encontros com mais de 400 concertinas, que ajudaram a tornar este instrumento muito popular”, revela.
 
A concertina era o seu instrumento de eleição, levando a criar um "grupo de concertinas". Numa apresentação, cruzou-se um dia com Quim Barreiros, que lhe disse: "Ó bacano, mete um bombo para marcar o ritmo”. Isso leva-lo-ia a apostar em bombos, depois bateria e um baixo acústico, cruzados com guitarra elétrica e o violão, o violino ou os tradicionais cavaquinho, bandolim, viola braguesa e gaita de foles, além da própria concertina, num estilo muito próprio, de que é percursor. “A TV deu um impulso importante à música popular”, admite Augusto Canário. Na sua humildade característica, afirma: “Há atualmente jovens que tocam muito melhor do que eu, mas eu sigo o meu rumo, sem mudar o meu estilo nem atrás das modas”. Define o seu trabalho como "um caminho no tradicional, com os viras, as marchinhas e as desgarradas, com músicas humorísticas de alguma graça e piadas, mas também com algumas músicas muito sérias”.
 
 
A academia

Em 1992, o seu trabalho na instituição social levou-o a querer licenciar-se em Animação Sociocultural. "Depois dos escuteiros me terem dado alguns ensinamentos importantes na forma de trabalhar, a universidade deu-me outras ferramentas de organização essenciais”, frisa. Contudo, concluída a licenciatura com boas notas e empenho, afastou-se da academia, desencantado com a falta de reconhecimento dos profissionais da animação sociocultural. Até ao dia em que um investigador, entusiasta da literatura de cordel e do repentismo brasileiro, o desafiou para o projeto FestCordel, que pretendia cruzar cantares ao desafio portugueses com os cantares brasileiros e galegos, além da literatura de cordel. “Aqui, eu levaria um livro que tinha editado, com uns escritos meus das minhas desgarradas e cantares ao desafio - ele entendeu que este livro deveria ser apresentado na Universidade de Aveiro” (UA), recorda.
 
Este episódio levou-o a candidatar-se a um doutoramento em Estudos Culturais na UA. O início do curso coincidiu com a época alta dos espetáculos no estrangeiro. “Entre os meses de setembro a outubro/novembro, era uma azáfama entre viagens e aulas de doutoramento”, reconhece. "Esse ritmo, aliado a uma certa falta de apoio, principalmente em cadeiras em que havia docentes diferentes de semana para semana, levou-me a perder o comboio e a desmotivar-me”, confessa. Sem pergunta de partida para a sua tese, acaba por desistir. Mas por pouco tempo. Augusto Canário candidatou-se então ao doutoramento, na mesma área, na UMinho.
 
"Canta-se ao desafio um pouco por todo o mundo", situa o artista, para continuar: “Em Espanha tem algumas cambiantes, em Itália, Cuba, Venezuela, Argentina, Uruguai... tudo remanescências de cantares de improviso ou memorizad,o que são um interessante e muito vasto manancial de estudo”. Em Portugal, as televisões interessaram-se recentemente pelos cantares ao desafio, as redes sociais dão-lhe uma projeção internacional e começam também a aparecer muitos jovens intérpretes. “Tudo isto desperta a minha vontade, mas é muita informação e perturba o meu foco e a minha definição”, admite.
 
Augusto Canário está interessado em realizar um estudo sistematizado, numa incursão pelas formas como se canta ao desafio no país, com algumas formas que foram recuperadas, como na Madeira e nas Beiras. "Tudo isto será com levantamentos estruturais das estrofes, dos conteúdos e dos acompanhamentos e instrumentos, num trabalho muito vasto e que é interessante de ser feito”, declara. O doutorando conhece nomeadamente levantamentos históricos de cantares nas ilhas dos Açores, desde o século XVIII ao XXI. Porém, isso não existe no Minho, por exemplo. Há, sim, apontamentos de alguns investigadores e especialistas que, segundo Canário, deviam ser catalogados e estudados nas formas, nas transformações ao longo dos tempos e nas suas dinâmicas sociais.

“Por exemplo, os cantares ao desafio do nosso São João de Braga e de outras festas de cariz religioso não tinham palco até aos anos 80, pois os padres não gostavam muito disso, por causa de algumas características sensíveis, pois cantam vernáculo, 'arreiam' em tudo e não são politicamente corretos”, confidencia. Nas formas de apropriação, a evolução é também tecnologicamente influenciada. “Viajamos de um tempo em que, para se ouvir desgarradas, tínhamos que encontrar-nos em terreiro ou ir às festas; passamos depois pela venda das cassetes, dos discos e, mais tarde, dos CDs, até chegarmos aos meios digitais de hoje, que potenciaram uma divulgação brutal dos cantares ao desafio através da internet e das redes sociais”, resume.
 
Possuindo muito material recolhido nesta área, Augusto Canário sente-se acarinhado na UMinho. Está determinado a recuperar a motivação, para “deixar um contributo para todos" os que o ajudaram e, também, para “pegar neste património nacional, dar-lhe um cunho científico e candidatá-lo a Património Cultural Imaterial da UNESCO”. Este valor cultural é um legado que quer deixar às próximas gerações, por isso tem apostado igualmente em projetos que levam as técnicas e a história dos cantadores ao desafio às novas gerações.