Português falado em casa dos emigrantes revela conclusões sobre línguas nativas

30-04-2021 | Pedro Costa | Fotos: Nuno Gonçalves

Cristina Flores é diretora e investigadora do Centro de Estudos Humanísticos e professora associada do Departamento de Estudos Germanísticos e Eslavos do Instituto de Letras e Ciências Humanas da UMinho

Na conferência "Refugees, Heritage Languages and Language Attrition", realizada em dezembro, em Braga

A intervir num seminário recente organizado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa

O desenvolvimento da proficiência numa língua tem um impacto positivo na outra língua que se aprende

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Cristina Flores, do Centro de Estudos Humanísticos, estudou o tema com entidades da Alemanha e Suíça.




O uso da língua portuguesa no seio das famílias portuguesas na Suíça não impede que as crianças lusodescendentes desenvolvam uma alta proficiência na língua nativa daquele país em que são escolarizadas, como o francês, o italiano ou o alemão. Este é o resultado de um estudo, sobre o uso da língua portuguesa em família, coprotagonizado por Cristina Flores, diretora do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho. Desenvolvido com a colaboração da Coordenação do Ensino Português na Suíça (CEPE Suíça) pela Universidade do Minho e a Goethe Universität de Frankfurt (Alemanha), o estudo “Crescer bilingue na Suíça. Sobre a importância de usar a língua portuguesa no seio familiar” foi coordenado por Cristina Flores, por Lurdes Gonçalves, da CEPE Suíça, para além de Esther Rinke e Jacopo Torregrossa, professores na Goethe Universität de Frankfurt. O NÓS foi falar com a investigadora da UMinho que nos deixou breves traços sobre esta linha de investigação que promete múltiplas abordagens, num campo de estudo vasto que lança desafios a outras especialidades científicas.

 
Como surgiu a ideia de abrir esta linha de investigação?
As motivações também foram um pouco pessoais, pois eu nasci na Alemanha e os meus pais falavam português, por isso eu cresci com o português e o alemão. Quando vim viver para Portugal e estudar para a universidade, verifiquei que o português que eu falava nem sempre era igual ao que os meus colegas falavam cá.
Mais tarde, no doutoramento, comecei a investigar o caso dos falantes regressados, que tinham crescido na Alemanha, com o alemão como língua dominante. Depois do regresso a Portugal, tendo perdido o contacto regular com o alemão, muitos deixaram de produzir frases gramaticais em alemão e deixaram de ter fluência nessa língua. Isso intrigou-me, pois pareciam ter perdido uma das suas línguas nativas.
 
Quais os principais resultados desta linha de investigação já apurados?
Nesses primeiros estudos, investiguei o alemão, que era uma língua dominante mas deixou de o ser importante para a criança depois da mudança de país. A conclusão principal é a de que a língua parece ser adquirida na infância e o falante parece ser fluente, mas uma criança que perde o contacto com uma língua nativa, antes de esta estar consolidada na mente, acaba por perdê-la. Nós acabamos por perceber que, se a perda do contacto acontece antes dos 11 ou 12 anos de idade, pode acontecer o que nós chamamos de “erosão severa” da língua.
 
Pode dizer-se que nestes casos adquirem uma nova língua, que não é nativa mas acaba por ser a sua principal língua?
O que podemos dizer é que a dominância vai mudando ao longo da vida. De facto, uma língua que é dominante pode deixar de o ser, e uma que não seja, pode tornar-se a língua dominante do falante, que a considera nativa. Isto não é estático e depende do contacto que se tem com a língua.
Portanto, esta é também uma questão com ramificações sociológicas. A importância que a língua tem na vida da pessoa, o valor que é dado àquela língua, o prestígio que a língua tem, tudo isto influencia o processo de manutenção da língua. Por vezes os emigrantes deixam de falar a língua de origem, quando a sociedade não considera que esta é uma língua de prestígio. São mesmo aconselhados a fazê-lo, às vezes até por médicos e psicólogos. Muitas vezes, as segundas gerações têm vergonha de a usar e isso leva a uma rejeição do uso da língua de origem, o que pode ter consequências para o seu desenvolvimento.
 
A alternância da dominância é um fenómeno que pode ir acontecendo sempre ao longo da vida?
A idade é muito relevante. Sabemos que a infância é a fase mais importante, pois é quando adquirimos e consolidamos o conhecimento da língua materna. Se há perda ou redução de contacto com a língua durante a infância, as consequências são maiores e há uma alteração muito evidente da competência linguística. Mas, mesmo em idade adulta, pode ocorrer alteração de dominância. Há casos de pessoas que emigram entre os 20 e os 25 anos, vivem várias décadas sem contacto com a língua de origem, e sentem-se muito mais confortáveis em usar a segunda língua. Contudo, nestes casos, concluímos que a sua língua materna não se perde. Claro que há palavras e expressões que são esquecidas, o sotaque pode mudar, mas a língua nativa não se perde completamente.
 
No que diz respeito à apetência individual para a apropriação da língua, ou das línguas. Isto é um mito, ou acontece mesmo?
Na língua materna não acontece. Sabemos que as crianças (saudáveis), que têm contacto regular e contínuo com uma língua nativa, apresentam um processo de aquisição muito semelhante. O processo é bastante uniforme, pelo menos no contexto de aquisição monolingue. Mas quando falamos de uma segunda língua, adquirida em fase mais tardia, há estudos que demonstram que a aptidão linguística pode ser uma fator influenciador. A dificuldade consiste em demonstrar o quanto este fator influencia o processo de aprendizagem de línguas segundas. Há muitos fatores individuais que influenciam este processo, desde a motivação, e aptidão às estratégias de aprendizagem.
Há um mito que se relaciona com as crianças que adquirem as duas línguas em simultâneo – por exemplo no caso dos emigrantes portugueses – que aprendem o português falado em casa, que chamamos de língua de herança, e a outra língua da escola e dos amigos. Há quem defenda que isto prejudica o seu desenvolvimento. Ouve-se afirmações como “coitadas das crianças que são confundidas com as duas línguas”. Não é verdade e a investigação demonstra que há vantagens em crescer com as duas línguas. Mas, como já mencionei, ainda há profissionais que aconselham os pais a não falarem a língua de origem em casa, com o argumento de que isso confunde as crianças. Contudo, há estudos, como o estudo que estou a conduzir atualmente, que contradizem esta afirmação com dados científicos.
 
Em concreto este novo estudo na Suíça, que passos pretende dar nesta linha de investigação?
Muitos dos estudos que conduzi até agora incidem sobre o par português-alemão. Eu sou doutorada em linguística alemã. Nesta fase, o que pretendemos é alargar as conclusões de forma mais sistemática a outras combinações linguísticas. Logo, a Suíça é sítio ideal para se conduzir um estudo deste tipo. Primeiro, porque a Suíça tem uma grande comunidade de emigrantes portugueses. Depois porque tem as três áreas linguísticas e aí conseguimos recolher dados de crianças que tenham como língua maioritária o alemão, o francês, ou o italiano, num contexto social muito semelhante, mas com diferentes línguas em contacto.
 
É possível a partir desta produção de conhecimento abordar investigação de outras especialidades, nomeadamente sociológicas?
Sim, pois nos dados que recolhemos, de cerca de 500 crianças e famílias, usamos diferentes instrumentos. Fazemos uma abordagem do ponto de vista linguístico, mas também desenvolvemos um questionário extenso, que foi preenchido pelos pais – e tivemos muita sorte porque houve uma forte participação – e nesse questionário há muitas questões que não são linguísticas, mas são relacionadas com os hábitos linguísticos, os contextos de uso das línguas, as suas atitudes face à transmissão do português, as motivações para inscreverem os filhos nas aulas da rede de EPE do Instituto Camões, que nos dão muita informação que pode ser analisada do ponto de vista sociológico. Mas essa não é a minha especialidade e requer um trabalho mais multidisciplinar.