Sustentabilidade alimentar servida com moderação nas revistas dos supermercados

31-01-2022 | Daniel Vieira da Silva

Cynthia Luderer tem investigado em torno dos fenómenos ligados à alimentação no contexto de "espetáculo mediático"

A investigadora estabelece pontes com o universo dos princípios da Agenda 2030 da ONU

Duas das revistas analisadas por Cynthia Luderer

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No Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Cynthia Luderer investiga a mensagem das revistas gastronómicas dos supermercados nacionais.





Os supermercados portugueses têm em conta a tão apregoada sustentabilidade alimentar nas suas publicações gastronómicas? Foi na tentativa de responder a esta questão que Cynthia Luderer se debruçou nos últimos tempos, analisando as mensagens por detrás de uma “simples” revista de dicas de culinária. A investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da UMinho percebeu que consciência ambiental e lucro das cadeias de supermercado não combinam na mesma receita. Doutorada em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil), Cynthia Luderer tem trabalhado em torno da alimentação contemporânea e a forma como esta fica envolta num crescente “espetáculo mediático”.

No CECS, sediado no Instituto de Ciências Sociais da UMinho, em Braga, concluiu que as revistas publicadas pelos maiores distribuidores de alimentos são “ferramentas de marketing e espelhos dos negócios” e “há uma dissonância nos discursos relacionados com a sustentabilidade, pois é percetível o conflito de interesses económicos face aos que são a favor do meio ambiente e das questões sociais”. A investigadora refere ao NÓS que o enunciador – o supermercado – “faz tudo para seduzir o leitor, através de imagens, promoções e apelos a narrativas, que podem convocá-lo a seguir as suas orientações”. Ainda assim, e de acordo com algumas entrevistas feitas na sua investigação, há consumidores conscientes do propósito destas revistas: as vendas.


Lucro e ambiente nem sempre são servidos no mesmo prato

“Há a versão do alimento que é colocado no mercado como produto e, como tal, apresenta-se na condição de mercadoria, com vista ao lucro, e é nesse ponto que o alimento se distancia de ser pensado de modo consciente e muito menos cria vínculo com a sua essência: o ambiente”, refere Cynthia Luderer.

Após a análise detalhada das publicações das grandes superfícies em Portugal, a investigadora dá conta que “a consciência social e ambiental, quando se fala de um alimento, “está em consonância com a vibração por um alimento vinculado ao bem comum”. Assim, o consumo desse alimento “passa a ser um ato moral, pois o alimento mata a fome”, explica. A autora vai mais longe. "Pensar num alimento com consciência social e ambiental é olhar para um grão de sal e perceber e valorizar todos os agentes e elementos que contribuem para o milagre que ele faz num prato”, exemplifica, para continuar: “O alimento na condição de produto ou mercadoria não dá conta de alcançar esse paradigma, nem se estiver numa embalagem preta com rótulo dourado”.
 

 
Revistas usam a saúde e abusam do papel “cronometrado” de mãe

 A investigadora identifica a saúde como sendo o discurso dominante nas revistas, “ditado pela voz de especialistas, sobretudo os nutricionistas”. A presença do tema nessas revistas "está sempre em sintonia" com as promoções das cadeias de supermercados. “As questões de género também são latentes; afinal, a mulher é o público-alvo e o pacote discursivo dita o papel da 'super-mãe', que trabalha e alimenta a família, o seu bem maior - e nesta luta contra o cronómetro, o seu 'aliado' é o supermercado, que para o seu bem-estar oferece-lhe congelados, ultra-processados, semi-prontos e conservas, receitas rápidas, destacando nesse nicho os produtos de marcas brancas, que ganham destaque nestas redes, com cada vez maior fidelidade do público”, enumera.

No lado oposto, ou seja, sem qualquer relevância dada pelas revistas, está a questão racial, ao representar maioritariamente atores “brancos” nos seus conteúdos. “A diversidade é invisível nessas publicações e isso também se nota, por exemplo, na omissão de pequenos produtores”, detalha.
 


A culinária como moda

Segundo Cynthia Luderer, as revistas de culinária analisadas estão vinculadas ao setor de marketing dos supermercados e ambas têm as mulheres entre os 25 e os 35-40 anos de idade como público-alvo - nem ricas, nem pobres. Sobre este aspeto, o 2º Grande Inquérito sobre Sustentabilidade em Portugal mostrou que são as mulheres a liderar as compras de alimentos nas famílias e os supermercados são os lugares mais visitados para esse consumo.

A investigadora do CECS afirma que a alimentação "faz parte do circuito da moda", sendo um elemento para a distinção social. “Os meios de comunicação social contribuem imenso para esse movimento e, sem dúvida, um influencer ou um programa matinal de televisão podem contribuir para esvaziar muitas prateleiras dos supermercados”, refere, dando o exemplo do fenómeno “pão-demia” no início de 2021, vinculado à cozinheira e apresentadora Filipa Gomes.
 


Um interesse que vem de longe e que teve de ser adaptado

Cynthia Luderer começou a interessar-se pelo tema tendo as revistas de gastronomia brasileiras como objeto do seu doutoramento. Na altura, conferiu o papel dos chefs como celebridades no espetáculo mediático da gastronomia, que eclodiu este século. Com a sua chegada a Portugal, percebeu que o fenómeno não era tão explorado e procurou novos caminhos para continuar os estudos. Foi aí que se debruçou nas revistas dos supermercados portugueses sob o ponto de vista da sustentabilidade evidenciada. Após a recolha e leitura detalhada do material em estudo, procedeu à análise dos discursos em consonância com a semiótica da cultura, tendo também em conta a antropologia da alimentação.

“A alimentação, quando está de mãos dadas com a comunicação, eleva imensamente o potencial de novas discussões para explorar e desvendar. Este percurso com as revistas e os supermercados tem instigado a exploração de outros temas e contribuído para aproximar colegas para criar parcerias. Com isso, tenho estudado o consumo da carne e o universo dos vegetarianos, tentado entender mais amiúde os discursos em torno da dieta mediterrânica, assim como da tradição, e ainda avançando sobre o repertório das vilas ecológicas e pequenos produtores, por exemplo", frisa. A memória - dentro de um prisma mais amplo - é um foco importante para entender esses textos culturais, tendo até sido apresentada como um sintoma desses e de outros movimentos atuais que passam pela alimentação”, realça.

Para Cynthia Luderer, “investigar neste campo é um desafio, pois há muita dificuldade para se conseguir chegar aos dados ou aos agentes vinculados direta ou indiretamente aos grupos dos supermercados”. Está consciente que, além de inibir os estudos, essas barreiras "inibem as possibilidades" para ampliar parcerias ou criar vínculos entre a academia e o mercado. "Como já analisei no mestrado, os limites contribuem para o processo criativo e essas fronteiras estimulam-me a procurar as fontes nas margens; e foi aí que surgiram os pequenos produtores e associações, que indicam manter uma relação de animosidade com as grandes superfícies - desse ângulo, comecei a perceber outro universo, aparentemente muito mais coerente com os princípios da Agenda 2030 das Nações Unidas”, conclui.