“Sou um académico que gosta de participar nas soluções”

17-02-2022 | Pedro Costa | Fotos: Nuno Gonçalves

1 / 5

Fernando Alexandre recebe hoje o Prémio de Mérito Científico da UMinho. É uma referência no estudo da economia portuguesa.




Licenciado e mestre em Economia pela Universidade de Coimbra e doutorado pelo Birkbeck College da Universidade de Londres, Fernando Alexandre é professor associado com agregação na Escola de Economia e Gestão (EEG) da UMinho e um dos economistas mais ouvidos e respeitados do país. Além de académico reputado, tem desempenhado várias funções de gestão, tendo sido pró-reitor da UMinho e presidente da EEG. Atualmente, ocupa também os cargos de vice-presidente do Conselho Económico e Social, consultor da Fundação Francisco Manuel dos Santos, membro do Conselho para a Produtividade e membro do Conselho Geral do Politécnico de Leiria. Foi ainda secretário de Estado no XIX Governo Constitucional. O autor e/ou coordenador de oito livros sobre a economia portuguesa e de artigos em revistas científicas internacionais de referência foi igualmente consultor da Comissão Europeia e do Governo português, entre outras entidades. A sua participação no debate em espaço público tem-no levado a trabalhos de opinião e comentário na RTP e nos jornais Eco e Observador, entre outros.

 
Quem é Fernando Alexandre?
A minha família é originária de Viseu, mas eu vivi em muitos sítios. Nasci em Ílhavo e cresci na Figueira da Foz, onde tenho muitos amigos e ligações – por isso, a praia de Quiaios é muito especial para mim e onde volto com muita regularidade. Estudei e casei-me em Coimbra, outra das minhas cidades. Depois há Braga, que é uma cidade muito especial, onde trabalho e vivo desde 1997, pois a família mudou-se para Braga nessa altura e somos aqui muito felizes.

Hoje é um minhoto?
Sim. Os meus filhos são claramente minhotos, nasceram ou cresceram em Braga, pertencemos a esta região extraordinária.

Como ocupa o seu tempo livre?
A minha grande ocupação é a leitura. Leio muito e muitas coisas fora da área da economia. Na parte lúdica leio muito romances – pelo menos dois romances por mês – e tenho sempre a poesia por perto, pois é muito importante para o meu equilíbrio. Leio muito para perceber o que está a acontecer no país e no mundo: história, filosofia política, e, cada vez mais, sobre ciência e tecnologia. O meu principal hobby acaba por se misturar com o meu trabalho! Eu costumo dizer que o académico tem o privilégio de poder “fechar a porta” e estar consigo próprio – e eu tenho essa necessidade. Nesse espaço, que todos os que me conhecem respeitam muito, diariamente tenho momentos essenciais para a reflexão, para a procura de conhecimento, para a escrita, que são intercalados por momentos de porta aberta para a sociedade, para os alunos, para os meus colegas. A escrita tem uma parte muito solitária, o que implica estar muitos dias e semanas, noites e férias fechado no gabinete, o que, confesso, me realiza.

É mais ligado ao papel do que aos ecrãs…
Eu gosto muito de cinema e quando era estudante consumi muito cinema, na faculdade fundei até um clube de cinema. Hoje vejo pouca televisão e uso mais o streaming para ver filmes e séries. O facto de ter ganho muito tempo para as minhas leituras prejudicou o tempo para a TV e para o cinema.

Como se informa mais?
Não compro jornais em papel há muitos anos e sigo a imprensa internacional desde a faculdade, quando comecei a assinar a Time e a The Economist, gosto de seguir estas referências que me ajudam a identificar tudo o que está a acontecer no mundo. Segui também um pouco a imprensa francesa, mas sigo atualmente os órgãos de comunicação social portugueses em geral e alguns opinion makers. Gosto de jornais, mas sou muito seletivo. Hoje, as redes sociais também são importantes e uso mais o LinkedIn, onde encontro informação de natureza profissional. E oiço muitos podcasts nas minhas caminhadas. Não perco um episódio de People I (Mostly) Admire ou The Ezra Klein Show. Essencialmente, preciso de saber coisas e perceber o que está a acontecer no mundo. A ignorância é uma coisa assustadora!

O que seria se não fosse economista?
Quando era miúdo, adorava ciências e biologia. Adorava os programas de Jacques Cousteau e o mar sempre foi muito especial para mim. Quando fui estudar para Coimbra, uma das coisas difíceis foi ficar longe do mar, de tal forma que, quando voltava ao fim de semana, a primeira coisa que fazia era ir ver o mar. Apesar de ser muito bom aluno a Matemática, eu adorava História e ir para Economia acabou por ser natural, pois é uma ciência social onde o rigor e pensamento abstrato são essenciais. É uma ciência que pretende perceber o funcionamento das sociedades, muito para além da Economia. Nos meus primeiros anos de curso tive muitas atividades extracurriculares, casei e fui pai quando ainda era estudante e mudei um pouco a minha forma de estar. Depois disso, completei o curso como um dos melhores alunos, estando quase sempre no topo das melhores notas do curso. O meu dilema, mais tarde, foi o de saber se deveria ir trabalhar para as empresas ou se continuava a estudar.

 

 
"Ser professor na UMinho realiza-me completamente"

Como resolveu o seu dilema pós-curso?
Quando terminei, fui selecionado por uma das melhores empresas portuguesas – e que estava nos meus horizontes há algum tempo –, só que acabaram por acenar-me com uma bolsa da JNICT [Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, antecessora da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia] para continuar a estudar. Pensei sempre que iria estudar mais um pouco e depois iria ser gestor, porque era o que eu queria fazer.

Mas não aconteceu…
Pois... Eu tenho esta dimensão de reflexão e de estudo, mas tenho um lado prático que me impele a tentar fazer parte da solução e não ficar só no pensamento crítico sobre os problemas. É a minha maneira de estar. Aqui na universidade acabei por me realizar nessa dimensão, pois tive várias tarefas de gestão, uma dimensão a que dediquei muitos anos da minha vida.

É aqui que acaba por ficar…
A minha tese de mestrado foi sobre o que mais me atraiu na Economia – o crescimento económico e as desigualdades de rendimento. Entretanto, na biblioteca da Universidade de Coimbra falaram-me na abertura de vagas para desenvolver o Departamento de Economia da UMinho. Concorri, vim à entrevista – lembro-me que fui entrevistado pela professora Dolores Cabral e por Paulo Guimarães. Fui selecionado e, quando iniciei funções, a ideia era perceber as perspectivas de futuro na UMinho. Mas desde o início que Paulo Guimarães, então diretor do departamento e agora diretor-adjunto do Departamento de Estudos do Banco de Portugal, imprimiu aqui uma marca.

De que forma?
Fixou de forma muito clara a afirmação do departamento através da qualidade da sua investigação, muito direcionada para a análise de dados. Eu fazia parte de um grupo de cerca de 15 pessoas contratadas nesses anos, que foram fazer o doutoramento em excelentes universidades americanas e europeias. No meu caso, fui para Londres em setembro de 1999 e vivi três anos no coração dessa grande metrópole, uma das minhas experiências mais transformadoras, tendo um extraordinário orientador, hoje também um amigo, o professor John Driffill. Ficar cá foi natural. Hoje, ser professor na UMinho realiza-me completamente.

Como foi quando regressou de Londres?
Em 2003 havia um ambiente superdinâmico, com colegas a regressarem de universidades de topo, numa multiplicidade de experiências e de envolvimento em redes internacionais, onde todos tinham muita ambição, o que nos mobilizou para afirmarmos o nosso departaento e o centro de investigação NIPE [Núcleo de Investigação em Políticas Económicas e Empresariais] entre os melhores do país, o que alcançámos ao fim de poucos anos.

É um contributo essencial para fazer crescer uma escola e uma universidade…
Sim, mas gostaria de salientar que este percurso da EEG e do Departamento de Economia foi possível dentro da UMinho, com o seu ADN, por um lado, a estratégia de afirmação como universidade de investigação e, por outro lado, procurando sempre contribuir para o desenvolvimento da região e do país.

Como é que a sua carreira se direcionou para a economia portuguesa?
Continuo a ser um macroeconomista e a ler e a estar muito atento, em particular às questões da política monetária, mas passei a focar-me na economia portuguesa com a crise financeira internacional. Nessa altura, em 2008/2009, tornou-se claro que Portugal estava estagnado há quase uma década e, com a crise, a situação iria agravar-se. Nessa altura, os agentes económicos e os media estavam muito mais atentos à academia e esperavam dela respostas para os problemas graves que enfrentávamos. Os media passaram a solicitar muito os economistas e esperavam que déssemos respostas sobre as causas da crise e como se poderia ultrapassá-la. Eu e muitos colegas da UMinho participámos ativamente nesse debate público.

Mas isto acaba por prejudicar o seu percurso académico.
Não vejo as coisas assim. Nessa altura, os melhores economistas portugueses não estudavam a economia portuguesa e dedicavam-se sobretudo ao estudo da economia americana, porque os temas aí discutidos estavam em linha com as agendas de investigação das principais revistas internacionais. Desse ponto de vista, a economia portuguesa não era sexy. Escrevi então um post no blogue A Destreza das Dúvidas: “Porque é que os melhores economistas portugueses não estudam a economia portuguesa?”. Essa afirmação gerou alguma discussão e recebi um email de Ricardo Reis, uma estrela em ascensão – professor na Universidade de Princeton [EUA] e agora na London School of Economics [Reino Unido] – a desafiar-me a agarrar, eu próprio, no tema da economia portuguesa.

Foi o momento-chave.
Este desafio, vindo de alguém que eu já na altura admirava, fez-me pensar se a minha investigação sobre a economia portuguesa não poderia ter mais impacto. Lancei então o primeiro projeto, aproveitando que em 2011 se celebravam os 25 anos de Portugal na UE. O mau desempenho da economia portuguesa coincidiu com a adesão ao euro e esta coincidência levava a que analistas, comentadores e alguns economistas estabelecessem uma relação causal entre os dois eventos. Tivemos um papel nessa discussão, salientando as causas internas da crise portuguesa. Deste projeto, que resultou no livro A Economia Portuguesa na União Europeia: 1986-2010, participaram mais de 30 investigadores de 12 universidades portuguesas e estrangeiras. Esta obra teve várias edições e ainda é uma referência nas unidades curriculares de Economia Portuguesa das licenciaturas em Economia.





Apoiar os decisores e as políticas públicas

Este momento muda a abordagem na investigação?
Desde o momento em que tomei a opção de abordar questões mais prementes para a economia portuguesa e não as que estariam mais alinhadas com os objetivos de publicação em revistas científicas internacionais, tive a consciência que iria ser penalizado nessa dimensão. Ainda assim, neste percurso não tive grandes estados de alma sobre a minha prioridade. Tenho uma característica, que é fazer coisas, envolver-me em projetos que tenham um propósito, um sentido, que produzam um impacto. Isso passa por participar na resolução de problemas práticos, estando atento aos desafios da sociedade. Por exemplo, qual é a forma mais eficaz de distribuir os fundos europeus de apoio às empresas? É atribuindo pequenos montantes a muitas empresas ou concentrando-os em menos projetos com alguma dimensão? Assim, prosseguimos com uma série de estudos, sempre em equipa, em que Miguel Portela é fundamental, tal como Luís Aguiar-Conraria, Carla Sá ou João Cerejeira, e muitos bolseiros e estudantes de mestrado e doutoramento, em que procuramos responder a desafios da economia portuguesa, muitas vezes lançados por entidades públicas ou privadas.

Por exemplo?
O livro Poupança e Financiamento da Economia Portuguesa, provavelmente o trabalho mais exaustivo sobre poupança em Portugal (que será atualizado nos próximos meses). Resultou de um desafio colocado pela Associação Portuguesa de Seguradores. A relevância dos nossos trabalhos sobre a economia portuguesa é também visível na atenção que lhes é dedicada por membros do Governo, da Presidência da Republica e de outros agentes públicos. Desta atenção resulta um contributo para a discussão pública e para a própria definição das políticas públicas. Se é verdade que esta atenção aumenta a nossa responsabilidade, também é verdade que sentimos estar a cumprir a missão enquanto universitários. Esse reconhecimento do contributo da UMinho é algo que nos dá ânimo e motiva a prosseguir a nossa investigação.

Pelas suas características, a passagem por um cargo governamental parece natural no seu percurso?
Penso que sim. A possibilidade de participar num Governo, num período tão difícil, levou-me a não conseguir dizer que não. Devo dizer que foram dois anos ao serviço do país, sem férias, a trabalhar ininterruptamente, sem qualquer dia de folga, mas foram também dos mais importantes para a minha formação e para o conhecimento que tenho do nosso país. Costumo dizer que foram os dois anos em que aprendi mais coisas. Alguém que chega a uma posição daquelas só não faz coisas se não quiser ou não souber, pois há um infindável número de problemas e há o poder para tomar decisões e ter um impacto visível na vida das pessoas. É a tal questão do propósito e da utilidade do que faço, que para mim é essencial. Nós, na UMinho, sentimos a importância desse impacto e que o que fazemos pode contribuir para a discussão e melhoria dos processos de decisão e das políticas públicas.

Como é que surge o livro Crise e Castigo?
Resulta da consciência de que valia a pena escrever em português para os jornalistas e para um público generalista, embora fosse um investimento grande, dado ser muito diferente da escrita académica. Orgulho-me muito desse livro, que escrevi com o Luis Aguiar-Conraria e com o Pedro Cação, cujo título é uma referencia a um dos meus romances favoritos – Crime e Castigo – e traz aquela ideia de penalização associada à intervenção da Troika. Nesse livro procuramos fazer uma avaliação ponderada das causas da crise violenta que atingiu a economia portuguesa e que levou ao pedido de ajuda externa em 2011. A análise das causas da crise era muito partidarizada e procuramos dar um contributo mais analítico para a discussão. Penso que conseguimos um bom resultado [há uma versão atualizada de 2019]. Na apresentação pública estiveram presentes duas figuras.

Vítor Bento e Francisco Louçã.
Vitor Bento tinha analisado a crise financeira portuguesa, mas não falava do problema dos bancos e do seu papel nessa crise. Por outro lado, Francisco Louçã atribui a crise quase exclusivamente aos mercados, ilibando o Estado e os erros das políticas públicas. Nós fazíamos uma síntese, mostrando as falhas dos mercados, mas também as falhas do Estado. Francisco Louçã, não se revendo na leitura de alguns factos, fez questão de afirmar que se tratava de um “livro muito rigoroso”. A leitura dos dados pode ter diferentes interpretações, mas a análise dos dados tem que ser muito rigorosa, nomeadamente para quem, como eu, participa no debate público. Nas minhas intervenções na televisão e nos jornais tento seguir sempre duas regras. A primeira é a de falar de ideias e não comentar pessoas. A segunda regra fundamental é que o que defendo no espaço público estarei preparado para defender entre pares, na academia.

Mas tem posições ideológicas?
Sim, e é pública a minha posição ideológica. Mas não abdico deste rigor quando analiso, por exemplo, os programas de Governo ou propostas dos partidos políticos, incluindo aquele em que mais me revejo. Se eu não seguir estes princípios deixarei de ser um académico no espaço público e passarei a ser um mais um comentador e, nesse caso, nada acrescentarei ou o meu comentário perderá relevância. Também vejo os trabalhos que fazemos na UMinho sobre a economia portuguesa como um contributo para termos uma democracia mais robusta, dado que precisamos de ter melhor debate público, mais fundamentado, com mais rigor. A academia tem aqui um papel fundamental. Os académicos têm assim uma responsabilidade acrescida por estar associada a si uma imagem de maior credibilidade, que não podem defraudar.



Um espírito inquietamente prático

Onde se encaixa a lecionação nesse seu sentido prático?
Gosto imenso de dar aulas, com níveis completamente diferentes e abordagens na licenciatura, no mestrado ou no doutoramento. O ensino da Macroeconomia é muito estimulante dado que podemos motivar facilmente os estudantes com os temas do dia a dia – o crescimento económico, o desemprego, o défice orçamental ou a inflação (de volta ao debate público) preenchem um espaço muito importante nos media. Mas também no ensino tem que haver sempre a preocupação do rigor e de transmitir aos alunos a importância de fundamentarem as suas análises com dados e de discutirem os problemas económicos com base nas teorias e nos modelos analisados.

Estas devem ser competências distintivas dos diplomados do ensino superior?
Sem dúvida. Penso também que não se pode ser um bom professor se não se for um bom investigador. O professor universitário tem de acompanhar a evolução da ciência. Por exemplo, eu leciono Macroeconomia há mais de 20 anos. Neste período registaram-se grandes mudanças, com eventos como a crise financeira internacional ou o aparecimento das criptomoedas. Isso obriga-nos a trazer essas alterações, esses casos e as suas implicações para dentro da sala de aula, refletindo-os nos objetivos e conteúdos.

Definitivamente, não se vê daqui a 10 anos ao leme de uma empresa?
Sinto-me muito bem aqui na UMinho. É a minha casa. É o sítio onde passo mais horas. A agenda de investigação que tenho com o meu colega Miguel Portela vai ocupar-me nos próximos anos. Depois, com a maturidade que tenho hoje, consigo articular trabalho de investigação e a relação com entidades externas (governamentais, privadas...) que trazem outros prismas muito úteis para a investigação que fazemos, por exemplo, na área da produtividade e que não teria acontecido se só lêssemos papers e não tivéssemos uma forte interação com o contexto empresarial e com decisores políticos. O meu espaço de atuação privilegiado será sempre a academia, onde penso que posso dar o maior contributo e gerar mais impacto, sempre com uma intensa interação com a sociedade.

O que significa para si o Prémio de Mérito Científico da sua universidade?
Quando soube, fiquei muito feliz! Os meus colegas que o receberam nas anteriores edições são investigadores de altíssima qualidade. Por outro lado, é a validação pela minha instituição do meu trabalho – e volto a realçar que é o trabalho de toda uma equipa, onde o Miguel Portela é um parceiro fundamental que está comigo desde a primeira hora – que motiva e nos dá confiança para prosseguirmos este caminho, dando o melhor de nós.