O nosso primeiro artigo científico

17-02-2024 | Nuno Passos

Publicado a 1 de outubro de 1976, o estudo tem aplicações na biologia, radiologia e química analítica, entre outras áreas

Gráficos do primeiro artigo científico com autores da UMinho, na revista "Chemical Physics Letters"

A estreia de Chainho Pereira num "paper" foi em agosto de 1969, na conceituada revista da britânica Faraday Society

Chainho Pereira (à direita) com Fernandes Thomaz e Robert Cundall, na conferência internacional na Gulbenkian, em 1974

A tomar posse como reitor da UMinho, a 20 de julho de 1998, no Largo do Paço, em Braga

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Foi publicado em 1976 e tem aplicações na biologia, medicina e química analítica. Conversamos com o seu primeiro autor, Chainho Pereira.




Licínio Chainho Pereira, cofundador e antigo reitor da UMinho, mostra surpresa com o telefonema. “Sou autor do primeiro artigo científico desta academia? Que feliz coincidência!”, sorri humilde, aos 84 anos. “Bem, até faz algum sentido, as aulas na UMinho começaram em dezembro de 1975, submeti esse artigo em fevereiro enquanto já lecionava e ele foi revisto e aprovado relativamente rápido, sendo publicado a 1 de outubro de 1976”, evoca o professor emérito. Parte desse seu estudo tinha já sido feita na ULM - Universidade de Lourenço Marques (atual Maputo, Moçambique), onde lecionou antes e foi “o primeiro no hemisfério Sul” a ter uma bolsa de investigação da NATO.
 
O artigo em questão, "Temperature and deuteration effects on the fluorescence of benzenoid solutions", saiu então na revista internacional "Chemical Physics Letters", da editora Elsevier, e com autores do recém-criado Centro de Física e Química da UMinho: Chainho Pereira, Isabel Calado Ferreira (a doutorar-se na Royal Institution em Londres, antes de retornar à UMinho) e Marília Fernandes Thomaz (que transitaria para a Universidade de Aveiro). Ambas as investigadoras trataram da vertente laboratorial daquele artigo. As cinco páginas do trabalho cumpriram cada passo do método científico: introdução, experimentação, resultados (tabela e dois gráficos), discussão, agradecimentos e bibliografia.
 
Começava assim a era bibliométrica desta academia, que em quase meio século superou as 180.000 publicações de 5000 autores. Os dados estão no recente livro “Produção científica e académica da Universidade do Minho (1976-2022)”, dos Serviços de Documentação e Bibliotecas da UMinho. Esta universidade representa hoje 10% da produção científica do país e é líder nacional nas patentes.
 

Paper pioneiro em Moçambique
 
Chainho Pereira ficou conhecido como membro da comissão instaladora, vice-reitor (1983-98) e reitor (1998-2002) da UMinho. Porém, destacou-se também na docência e na ciência. Licenciou-se em Engenharia Química pelo Instituto Superior Técnico (IST) e doutorou-se em Física Molecular pela Universidade de Nottingham, na Inglaterra. Foi professor auxiliar da ULM e catedrático da UMinho. Soma dezenas de publicações e livros, de eventos organizados e de palestras pelo mundo, tendo ainda coordenado projetos de I&D, teses e cursos.
 
O seu primeiro artigo científico, “Emission spectra and phosphorescence lifetime of benzene solutions at 77°K, as a function of concentration and excitation wavelength”, data de 8 de agosto de 1969, na revista “Transactions of the Faraday Society”, da Royal Society of Chemistry. Foi em coautoria com os professores Michael Lumb e Carlos Lloyd Braga, que viria a ser o primeiro reitor da UMinho e ministro. Os três assinaram o artigo como investigadores do Laboratório de Física e Centro de Estudos de Energia Nuclear da ULM.
 
“Foi dos primeiros papers da ULM e o primeiro no contexto da Faraday Society, que tinha a melhor revista da área e era dificílimo publicar aí, foi ótimo terem aceitado o nosso artigo à primeira”, confessa Chainho Pereira. “Lumb era perito em equipamentos, Lloyd Braga era o estratega e eu realizei a parte prática do estudo”, situa. Lloyd Braga foi seu professor no IST e dirigiu o Departamento de Física da ULM entre 1967 e 1973, tendo convidado Chainho Pereira para aí lecionar.
 

Pesquisar em nanossegundos há 55 anos
 
O trio investigava na altura sobre fluorescência, fotofísica e fotoquímica em moléculas aromáticas, como benzenos. A ideia era relacionar parâmetros destas moléculas ao nível da fluorescência, “que se deteta bem” à temperatura ambiente, e em especial ao nível da fosforescência, “que a -196ºC permite ver fenómenos em nanossegundos”. Ou seja, o milésimo do milésimo do milésimo de um segundo. “Já se pesquisava isso na altura, mas ‘quase à mão’, hoje com inteligência artificial fala-se no picosegundo [10-¹² s] e com medições claramente mais rápidas e precisas”, considera. Que contributos tiveram os seus trabalhos para a sociedade? “A deteção de transições ultrarrápidas de moléculas, que após uma ínfima fração de tempo desaparece, pode ter aplicações na biologia, bioquímica, medicina, radiologia e em fins analíticos em geral”, devolve.
 
Este campo começou por ser teórico. Porque é que a emissão radiativa “caía” com aquele tempo de vida? E qual era o efeito? Chainho Pereira dedicou a tese doutoral à influência do meio ambiente na fluorescência (estado excitado de moléculas aromáticas), com e sem oxigénio/hidrogénio. “Na altura era difícil de detetar, tinha que ser sem ar nenhum – colocávamos a amostra numa espécie de frasquinho com rolha, injetávamos-lhe azoto em vários momentos e ao fim de muitas horas selávamos com o [calor do] bico de Bunsen”, exemplifica. O autor continuou a publicar artigos nos anos seguintes, alguns em parceria com cientistas e instituições britânicas, como Robert Cundall e o Instituto de Ciência e Tecnlogia da Universidade de Manchester (UMIST). “Depois tive cargos de gestão e tive que secundarizar a investigação”, admite.
 
Chainho Pereira esteve na criação de três laboratórios. Chegou em janeiro de 1967 à ULM, mas a ala científica estava por organizar. Apoiou então Michael Lumb, que foi trazendo equipamentos de Inglaterra em caixotes. “Como vê, a parte prática do tal artigo na Faraday Society foi em pouco tempo, ‘quase de empreitada’”, sorri. O seu segundo laboratório foi em 1973, ao obter a bolsa da NATO “na sua totalidade, com alguma surpresa”, para poder investigar e com novos equipamentos. O terceiro foi dois anos depois, em Braga, numa fase em que escasseavam verbas. O seu grupo juntou investigadores como Borges de Almeida, Elisabete Dias e Manuela Pinheiro, a par dos técnicos Lenine, Heitor de Almeida e muitos outros. “Estou grato a tanta gente que ajudou a montar isto”, frisa.
 
O chamado Centro de Química Pura e Aplicada nasceu em 1976, tendo os ramos de Síntese Orgânica, Física Molecular e Tecnologia Química. Foi a primeira unidade de investigação da UMinho e funcionou num pavilhão verde pré-fabricado junto ao Conservatório Gulbenkian até 1993 (passando depois para a Escola de Ciências, no campus de Gualtar). Ao seu lado, havia então o pavilhão da Informática, o das Ciências da Terra, o da Biologia e o da Química, cujo auditório servia para todos. As aulas iniciais eram no Largo do Paço, na rua D. Pedro V (atual sede da Associação Académica) e nos próprios pavilhões. “Queríamos arrancar o ano letivo e trabalhar com alunos, pois assim seria mais difícil um governo fechar a universidade, após o 25 de Abril havia esse risco”, frisa.
 

Momentos intensos em abril de 1974
 
Os professores Chainho Pereira e Fernandes Thomaz vieram da ULM para, com colegas dos EUA e Inglaterra, organizarem a International Conference on Excited States of Biological Molecules, que teve dois Prémios Nobel convidados e decorreu de 18 a 24 de abril de 1974, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Após seis dias intensos, Chainho Pereira tinha na manhã do dia 25 de abril uma reunião na casa de Lloyd Braga, em Lisboa. “O motorista [Fernando Silva] veio buscar-me ao hotel, dizendo que as pessoas gritavam por liberdade na rua porque houve uma revolução, mas não se percebia bem as coisas. Escusado será dizer que já não fizemos reunião, ouvimos as notícias pela televisão e rádio e fui dormir a casa de amigos”, relembra.
 
Os participantes estrangeiros da conferência ficaram retidos dois a três dias, porque o aeroporto estava fechado. No entanto, Fernandes Thomaz ligou a Chainho Pereira às 4 da manhã do dia 26 de abril, pois soube que ia partir um avião especial para ir buscar a Lourenço Marques o então governador, alegadamente por precaução. “Fomos a correr para o aeroporto e eramos os únicos passageiros a bordo”, salienta. Regressou a 13 de dezembro de 1974 a Portugal e começou a exercer funções na UMinho em janeiro de 1975.

A terminar, como vê a investigação na atualidade? “A UMinho está no bom caminho, tem imensos e bons grupos de investigação, como a Escola de Medicina e muitas outras. E as universidades em geral procuram fazer ciência de ponta em áreas importantes e diferentes, mas nos anos recentes há falta de financiamento”, observa. A investigação requer sempre atualização e com a evolução constante e o mundo digital muitos equipamentos ficam para trás, realça. “Penso que corremos o risco de nos distanciarmos dos principais países, a Europa precisava de reforçar esta área como o fez nos anos 90”, conclui.